quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Alcione Araújo - Meus mortos jazem em mim

MEUS MORTOS JAZEM EM MIM

Hoje é dia de tatear o coração e sentir as nuances da mesma dor nos buracos e lacunas deixados pelos afetos que fizeram de mim o que sou e partiram antes da hora. É dia de revolver a memória e reencontrar suas imagens, que, imunes ao tempo, são as mesmas de antes da despedida: umas afáveis e acolhedoras, outras mansas e silenciosas, algumas alegres, iluminadas e até eufóricas, e as momentaneamente indiferentes – viviam o que lhes coubera viver, sem saber que a partida estava próxima. E assim permanecem comigo. Todas me amavam, e eu também as amava, como amo ao lembrá-las, abraçá-las, tocar-lhes a mão, beijar-lhes o rosto, enquanto sussurramos segredos e intimidades. Não são mundos diferentes, mas tempos diferentes, que a memória aproxima e o coração reúne. Não é apenas que me habitam, os meus afetos me constituem.

Por isso, hoje é dia de saudade. Melhor que seja essa dor silenciosa e resignada. Se gritasse, dilacerasse, lancinasse, não suportaria, nem teria como arrancá-la de dentro de mim. Muda e quieta, a saudade dos meus afetos é também saudade de mim. Da pessoa melhor que fui com eles, do que me deram em vida, do que deles herdei. O que me tornei foi na ausência deles: mais pobre, mais cético, quem sabe menos amado. Trago-os no coração como pedaços de mim, e na memória para não me esquecer de que são pedaços de mim. Eu sou em pedaços.

Quando o esquecimento vence a memória, os afetos que partiram começam a morrer. Sei de povos que só os dão por mortos quando seus nomes não são mais citados. Sei da mulher que um dia não conseguiu mais se lembrar do rosto da mãe. Inconformada com a ingratidão da memória, que a matara definitivamente, se desesperou e chorou o próprio abandono. A memória não lhe devolveu a mãe.

Não choro meus afetos mortos e sou cético do nosso reencontro. Choro o que deles morre em mim e o que de mim morre com eles. Cada partida apaga uma luz em mim. Aos poucos vou me apagando em vida. Em dias como hoje, a memória ilumina lacunas e buracos, de onde eles surgem como Lázaros redivivos. Sei que é obra da saudade, mas meu coração esburacado se sente consolado.

Meus mortos jazem em mim; sou um cemitério vivo dos meus afetos que partiram – e até de alguns vivos, que brincam no playground no meu coração –, enquanto a memória vencer o esquecimento. Enterrados longe de mim estão seus despojos, à mercê de vermos ávidos. Sorvidos e absorvidos, são húmus de novas vidas. Tudo o que resta deles está em mim. E invertem-se os papéis: sou o que fizeram de mim, agora eles são o que eu fizer deles. O coração e a memória os mantêm vivos sem custo nem esforço. O amor, provisório entre os vivos, é eterno para os mortos.

Sem flores, sem velas nem lágrimas, hoje é dia de revolver a memória e, com o meu amor sem resposta e a saudade sem fim, visitar os mortos que jazem em mim. Eles não vão ressuscitar, e nada vai mudar, mas o meu coração esburacado vai se sentir consolado.

(Estado de Minas - 02/10/2009)

Olavo Romano - Discurso de Posse na AML

DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS

Neste momento em que a emoção transborda, recorro ao poeta anônimo de Cuitelinho, para quem, “o coração bate aflito, bate uma, outra falha... os olhos se enchem d’água que até a vista se atrapalha”. E não é para menos: coisa para banda e foguete, alma suspensa em alegrias. Epiphanio Camillo, fraterno companheiro de tertúlias literárias sentenciou: “para um menino nascido em Morro do Ferro, não é pouca coisa, não”.

Por isso, e como testemunhas deste ato tão singular e expressivo em minha vida – poderoso ritual de passagem a que me submeto com pompa e circunstância, mas com a espontaneidade possível –, aqui estão minha família, minha primeira professora, a diretora de minha primeira escola, amigos queridos, pessoas especiais pelo estímulo na caminhada que me trouxe a esta culminância. A Demosthenes Romano, meu pai, um quixotesco fabricante de sonhos imortalizado na saudade, a homenagem de minha gratidão.

Misteriosa é a trajetória do homem na Terra. Seja-me, pois, permitido mirar caminhos e circunstâncias. Morro do Ferro, amorável lugar onde nasci, é o único e último distrito de Oliveira. Na descrição do ilustre conterrâneo Ariosto Silveira, em livro ainda inédito, a região fica “no coração mineiro, longe das fronteiras, senhora de si mesma”. Por ali passou Fernão Dias, a caminho das minas. Por ali, na Picada de Goiás, chiaram bruacas e cangalhas. Apesar da mineral denominação e das pedras cúbicas de hematita que encascalham as estradas de terra, ali se fixou foi uma comunidade rural, “humilde e soerguida no ramerrão lento e fecundo dos enxadeiros, criadores e mercadores”. O viajante europeu notaria, mais tarde, que os fazendeiros só ocupavam as casas do arraial aos domingos, para ouvir missa.

O lugar é consagrado a São João Batista, que já lhe deu o nome, e a festa do padroeiro continua sendo o grande acontecimento dos batistanos.

Memorável era a Festa de Junho – ou, simplesmente, “a Festa”. Entre São João e São Pedro, encarreiravam-se outros santos, deixados de lado pela falta de padre permanente. Vinte, trinta, gementes carros de boi chegavam com canastras cheias de quitandas, frangos pendurados nos fueiros, mudança para uma semana. Depois, muitos iam ficando, no embalo de comentários e lembranças daqueles dias tão esperados.

Passada a festa, voltava-se ao reme-reme costumeiro. Os aviões, riscando o céu, não quebravam o isolamento do lugar, mas sinalizavam mundos distantes. A luz veio, foi-se embora numa enchente, voltou tempos depois.

Sem ela, contemplavam-se as estrelas, imaginava-se a imensidão do universo acima da cabeça, abaixo dos pés, além das montanhas e do alcance dos olhos. Cedo se aprendia que atrás de morro sempre tem mais morro, até não acabar mais. No rádio da venda, o Repórter Esso, testemunha ocular da História; a hora certa da Rádio Relógio, a Hora do Brasil, cotação do café e do cacau. No aviso aos navegantes, notícias do litoral distante, mistério de faróis e bóias apagadas, tudo acompanhado com incompreensível atenção . Duplas e trincas sertanejas competiam com novelas. Dom Rafael de Juncal, vítima de brutal derrame, tenta, há vários capítulos, revelar quem é o pai de Albertinho Limonta. No auge da ansiedade, a bateria arreia.

O telefone, de magneto e manivela, também custou a vir para ficar. Mesmo assim exigia berros que quase dispensavam o aparelho. Por esta época, a jardineira já corria todo dia, embora “correr” seja pura força de expressão.Mesmo com o luxo do correio diário, o jornal, do Rio, chegava com três dias de atraso.

Com a luz elétrica , o rádio perdeu a bateria e ganhou as casas: éramos todos fãs da Emilinha e do César de Alencar. Mas quase ficamos neurastênicos com certa música que não parava de tocar. A televisão trouxe o susto de um mundo em transformação, o fim das cadeiras na calçada. À boca da noite, traiçoeira no medo de avós, recolhiam-se as crianças. A prosa no serão se recolheria mais tarde, humilhada pelo poder da telinha e substituída pelas conversas dos televizinhos. Mas isso foi muito depois.

Em 1948, nas brisas da democracia, os Romanos pegam o caminho da roça. Vão morar nos Romeiros, lugar bonito, para os lados de São Tiago. Um certo menino, depois de regressar da primeira viagem em seu próprio cavalo, estirão de oito léguas, coisa pra homem, troca de roupa e proseia no alpendre. Traseiro ralado, olhos cheios de paisagem, assim resume sua primeira aventura: “Olha, gente, quem quiser saber como este mundo é grande, viaje pros lados de São Tiago”.Nos Romeiros, o contato com a natureza e com os vizinhos da roça ensina e enriquece, compensando a dureza da vida e da lida. O lugar, porém, não tem escola e o menino sai de casa pela primeira vez. Morar com os tios em São João Del Rei, no fraterno convívio com os primos, é luxo que ameniza a saudade dos pais e irmãos. Inesquecíveis são o cheiro de cipreste, a neblina das manhãs, mocotó fumegante em noites frias, Semana Santa de incenso e matraca, música e canto de sinos e igrejas. Ah, e a alegre liberdade de andar de bicicleta pela História!

A volta à família, ao fim de um ano, prepara despedida. O primeiro amanhecer no dormitório do internato,o Instituto Pinheiro Campos, é despertar para um novo tempo. Ali, sob os cuidados do competente mestre e querido amigo professor Paulo, e sua família, o adolescente tímido se sente empunhando pequena tocha que lhe caberia manter por toda a vida. Faz por onde merecer a oportunidade que a muito custo os pais lhe oferecem.

Primeiro a sair de casa, pensa na avó paterna, que aprendeu a ler escondido. Com sacrifício, ela paga adiantado o curso normal da primogênita, incumbindo-a de encaminhar os irmãos. Elo de forte cadeia, ele se vê começando nova volta do parafuso.

Oliveira sempre se orgulhou de seus filhos ilustres: o cientista Carlos Chagas, Tia Lilita, renomada educadora, Djalma e Paulo Pinheiro Chagas, importantes homens públicos, sendo Paulo Pinheiro também ilustre intelectual que engrandeceu esta Academia com seu talento. Nery de Abreu foi-se sem o merecido reconhecimento. Na geração anterior à minha, brilhavam Eliseu Resende, Geraldo Ribeiro de Barros, aqui presentes, e Honório Silveira Neto, que já não se encontra entre nós. A cada geração, honrou-se a presença da cidade na poesia de vanguarda, na literatura em geral, no teatro, na cultura popular, nas artes plásticas e arquitetura, no design de jóias, recentemente, e na preservação do patrimônio cultural, sobretudo no seu aspecto imaterial. Mesmo com o risco de omissões involuntárias, pelo que antecipadamente me desculpo, lembro os nomes de Amanda Vargas, Azuil, Heraldo e Sefisa Laranjo, Gláucia Silveira,Heloísa Muniz,Hugo Pontes João Bosco Ribeiro, João Rabiço, Judas Tadeu dos Mártires, Luis Alberto Pires, o MAPA, Márcio e Maurício Almeida, Márcio Gato, Maria Iris e o Coral Vozes em Canto, Maricélia e Toninho Nicácio, Mauro Fernal, Múcio Lo-Buono, Nelson Leite , Paulo Thielman, Psiu, Saulo Sabino , Sérgio Carvalho e Waldemar Oliveira. De Morro do Ferro, tenho a companhia de Marcelo Freitas e de Vivina de Assis Viana, texto sensível de que são exemplos O dia de ver meu pai e Rei dos cacos.

Oliveira se colore nas procissões, no congado e no carnaval. O congado é tradição renovada ano a ano, três gerações no mesmo culto ancestral, que a nossa querida Titane tão bem ajuda a perpetuar. Os “Cai N’água” são herança medieval de palhaços embuçados que alegram o carnaval de rua.

De passagem pela cidade, em 1910, Belmiro Braga, integrante da primeira geração de acadêmicos mineiros, escreveu:

Foram-me as horas benditas/Em vossa terra feliz/Terra de moças bonitas/ Terra dos homens gentis!/Agora penso também/Abençoada a canseira/ de todo aquele que vem/Buscando a vossa Oliveira.

Belo Horizonte era fria e garoava. A cidade recendia a dama da noite. No Colégio Estadual, traços de Niemeyer ainda cheirando a tinta fresca, Wilton Cardoso recitava cantigas de amor e de amigo, Etienne agitava no teatro, no esporte e na literatura, mestre Veloso acertava o relógio pelas caminhadas de Emanuel Kant. Nos eventos culturais, nas relações afetivas, na Universidade Católica e no trabalho, encontraria depois as figuras luminosas de Edgard e Aires da Mata Machado, Melo Cançado, Cândido Martins de Oliveira, João Camilo de Oliveira Torres, Orlando de Carvalho, Raul Machado Horta, Bonifácio Tamm de Andrada, cujos nomes engrandeceriam esta Casa de Alphonsus de Guimaraens.

No “Estadual”, fervilhávamos militando na Ação Católica – o “ver, julgar e agir” do padre Lebret, o ardente desejo de transformar o mundo, de ser o sal da terra, o fermento da massa. O carisma de Betinho eletrizava.

Sobrevivente da tuberculose, hemofílico incurável, o enfrentamento cotidiano da morte parecia rebrotar nele em lucidez e ousadia. Frei Mateus, dominicano de Dom Silvério, recém-chegado da França, capitaneava sonhos de mudança para um mundo fraterno. Edgar da Mata Machado, Aluísio Pimenta, Moacyr Laterza compunham a vanguarda que iluminou nosso caminho de testemunho cristão e busca da transcendência.

Encantados com o lirismo de Michel Quoist, bebíamos Jacques e Raíssa Maritain e suas grandes amizades. Mounier juntava cristianismo e humanismo. Com Bernanos, lemos o Diário de um Pároco de Aldeia sob o inclemente Sol de Satã. E havia, também, Exupèry. Depois do Pequeno Príncipe, de citação obrigatória, embarcamos num Vôo Noturno, acordamos como Piloto de Guerra, atingimos a Cidadela. Seguíamos Tristão de Athaide, éramos sócios de Corção em Três Alqueires e uma Vaca. Vibrando com as peripécias d’ O Excêntrico Mr. Blue, mirávamos a Estrela de Alto Mar, sabendo que Homem Algum é uma Ilha. Escalar A Montanha dos Sete Patamares era para poucos, mesmo Thomas Merton dando força em seu refúgio num convento trapista.

Jean Mermoz, companheiro de Saint-Exupèry e sobrevivente de uma pane nos Andes, venceu fome, frio e dor nas geleiras andinas antes de pronunciar a frase que não parávamos de repetir: “O que eu fiz, bicho algum, só o homem era capaz de fazer”. Com Frei Chico, sucessor de Frei Mateus, recitávamos que “mais vale morrer novo e usado do que velho e mofado”.

Universitário de Direito, o jovem se atira à política estudantil, gosto que provara no Ginásio em Oliveira. Atua em diversas frentes, integra a diretoria da União Estadual dos Estudantes. No Partido Democrata Cristão, faz parte dos diretórios municipal e estadual, funda e preside a Juventude Democrata Cristã.

Grato a parentes e amigos que lhe haviam propiciado carinho, pão e teto, inaugurara a fase das repúblicas e pensões. Indescritível era a Casa Amarela, bem ali onde a Avenida Brasil desemboca na Praça da Liberdade.

Tentava-se implantar uma república cristã e solidária para muitos de ganhos incertos à custa de espichar o curto rendimento de uns poucos. Mas nunca faltou abrigo para companheiros que, em meio a intermináveis elucubrações, perdiam o último bonde – Floresta, Pampulha, Calafate...

Perito criminal concursado, inicia, ainda vestibulando, carreira de ricas oportunidades de servir e aprender. O magistério, vocação aflorada ainda no ginásio, é mais atraente que o Direito. Leciona em todos os níveis de ensino, atua no treinamento empresarial e público. Mas o coração pulsa é no desejo de escrever, sonho e fascínio da vida inteira.

A alegria dos primeiros textos publicados vem nos anos 60, num guia trimestral de viagens, em jornais estudantis e institucionais, uma e outra crônica no Estado de Minas e no Diário de Minas. O sonho secreto era (e continua sendo) contar a saga da avó paterna, casada à força com um tio,

40 anos mais velho, para cumprir palavra do pai. Ela, porém, se apaixona pelo padre italiano do lugar, que a manda roubá-la. A jovem e o portador vêm “de galope, deixando abertas as porteiras todas”. O casal tem quatro filhos, que assistiam, com a mãe, às missas celebradas pelo padre-pai.

Falando e pensando no romance, o tempo passou, cheio de afazeres e obrigações.

Senhoras e Senhores,

Um dia, beirando os 40 anos, dei-me conta de que nada fizera ainda pelo sonho de minha vida. Tomado de incontrolável urgência, resolvi começar contando casos, como quem toma a sopa pelas beiradas. Recuperei cenas e personagens, vozes, jeitos e trejeitos gravados na memória e no coração.

A televisão já chegara a todo canto. Os velhos morrendo, os jovens saindo, ia-se a memória de tanta coisa vista, vivida e escutada. Enquanto era tempo, pus o pé na estrada. Começando por Morro do Ferro, fui atrás da música perdida nas entonações, nos deliciosos arcaísmos, nas artes e manhas da palavra saída da boca do povo.

Dureza era recolher histórias durante o dia. “Nasce rabo”, garantiam.Em Câmara Cascudo o enigma se decifra o enigma: “contar história de dia, nasce rabo de cutia”. Ora, sendo a cutia rabuca, o provérbio pela metade acabava surtindo enganoso efeito, difícil de contornar. Às vezes, diante de determinada pergunta, o sujeito ladeava, evitando mão em cumbuca: “vejo falar, não dou definição”. Encontrei gemas preciosas. O barranqueiro do Carinhanha, no aperto de explicar como esculpia na madeira, parafraseia Miguel Ângelo sem saber: “eu pego o pau, vejo o bicho que quero. Aí, tiro o resto com o canivete”. Pura e arrematada prova de que o vento da inspiração sopra por onde quer. Arguto professor canadense, perguntou-me, em curso no Banco Mundial: “você já observou que não há analfabeto oral?”. Tia Onofra, velha catadeira de papel, perdera o barraco numa tempestade. Ao chegar lá, contava: “Os cachorro miava que nem gato. Tava tudo no chão, meu filho. Em pé só ficou os arvoredo!”. E por aí poderíamos seguir, noite adentro, sem parar. Neste caminho, o caminho do coração, aprendi, convivi, me emocionei. Sobretudo, lapidei um dom, aquela fagulha que nos faz sentir mais perto do que realmente somos. Como o famoso saxofonista que, após magnífico improviso, declarou: “Sinto que sou do meu tamanho”. Um tamanho que, na mesmice do cotidiano, nem podemos vislumbrar.

Uma coisa eu garanto: contar caso, contar história, faz bem à saúde. Até salva a vida – Sherazade que o diga. Henrique Mateus, morador no Quebra Cangalha, era cardiopata em estado avançado. Mas, performático por natureza, cantava, dançava, pulava, fazia tudo quanto era papeata e bizarria para ilustrar suas histórias. Naqueles instantes mágicos, voltavam-lhe o fôlego, a cor, o ânimo, como atestou meu amigo Ronaldo Simões Coelho, médico e escritor, aqui presente.

“Se puderes viver sem escrever, não escrevas”, disse Rilke. Eu não pude.

Inventei tempo e coragem que não julgava ter. Superei limites, movido por incontroláveis apelos da alma. A suor e sonho, abri minha picada. Escutei muito caso, contei caso dentro de escola, de empresa, no meio da rua, sozinho, de cara limpa ou com violeiros e cantadores. Varei esse chão de Minas, andei pelo São Francisco, beirei o Jequitinhonha, entrei pelo Jacaré, fui cair no Rio Grande atrás de caboclo d’água, estória de pescador...Pisei o pó da estrada, recolhi muitos tesouros, fiquei rico de alegrias, achei meu rumo na vida...

Trago o coração aquecido pela legitimidade daqueles cujo universo tanto me esforcei por retratar. Dalila, viúva de Seu Quinho, primeiro grande contador de histórias que conheci, retomou certo texto de Casos de Minas, contou novas peripécias do personagem e pronunciou inesquecível julgamento: “O que eu gosto no seu livro é que ele parece a vida da gente”. Seu filho José Maria, que vi entronizado como sucessor do pai, está presente e talvez se lembre disso. Maria Lúcia Simões, amiga querida e premiada escritora, deu um exemplar do mesmo livro a um tio. Mineiro da gema, expatriado no Rio de Janeiro, os casos mineiros e a goiabada com queijo eram a Minas ao alcance da mão e do paladar. Idoso, vivia lendo o livro. Doente, ouvia pelo menos um caso por dia. Ultimamente, só alisava a capa do livro. Morto, levou Casos de Minas em sua última viagem.

Chego agora a este cenáculo, a que apenas 40 em 16 milhões de mineiros têm acesso. Uma vez, Vivaldi Moreira, pilar e guardião inesquecível desta Casa, estimulou-me a me candidatar. Mas era tempo de metamorfose, eu andava posto em alquimias.Depois, no entanto, considerando o trabalho que já ganhara maioridade, plenamente legitimado pelos remanescentes da Minas rural de onde vim, admiti me colocar, quando fosse hora e vez.

Faço agora uma revelação. Ano passado, ao contemplar, na câmara mortuária, o sereno semblante de Edgard de Vasconcelos, na paz dos que cumprem cabalmente a missão na Terra, refletia sobre a exemplar trajetória por ele percorrida, a admiração – infelizmente nunca expressa – por aquela rara figura de homem, de cidadão e intelectual. No silêncio de hora tão profunda, ao lado de minha mãe e irmãos, a família dele e minha entrelaçadas por afeto e parentesco, afloraram afinidades que ultrapassavam simples coincidências: a profissão de nossos pais (farmacêutico, o dele; dentista, o meu), a origem em famílias numerosas
(17x15 para ele), a educação severa, com prevalência do ser sobre o ter; o impulso para crescer nas dificuldades, pois, como lembra Guimarães Rosa, “o sapo não pula por boniteza, mas, porém, por precisão”... À afinidade de carreiras (serviço público, magistério e política), embora sem a pretensão de comparar graus de desempenho ou brilho, acrescentei o interesse pelo mundo rural – ele regendo sofisticada partitura, eu tocando apenas de ouvido. De repente, veio-me o fogo impetuoso de uma inspiração. E o que até então vagava pelo cérebro, tocou a alma, transformando-se em ardente desejo de sucedê-lo. Movido por força poderosa, empreendi campanha intensa e memorável, que acabou por trazer-me a este píncaro.

Senhoras e Senhores,

A imortalidade, nas religiões, se alcança após uma vida virtuosa.

Os deuses gregos viviam num estado de Athanatos (não morte), graças ao néctar e à ambrosia. O Paraíso platônico é a Via Láctea, na qual penetramos após a morte. Enquanto isto, cada um carrega, como pode, sua chispa de eternidade, essência das estrelas. No mito de Eros e Psique, ela é quem nos abre as portas do Olimpo. Vida, Amor e Morte, eis o triângulo que circunscreve a vida humana. “Amor é primo da Morte, e da Morte vencedor, por mais que o matem, e matam, a cada instante de amor”, garante Drummond. Perpetuado nos descendentes, ou realizando grandes feitos, o homem tenta fugir da morte. Como ensina Junito Brandão, “ a ponte que liga a Terra da Vida à Terra da Morte é o Amor, única sobrevivência e único significado para nossa vida!” Nas Academias, de fraterna convivência entre pares, assegura-se a imortalidade pelo constante rememorar dos que se foram, evitando-lhes a morte pelo esquecimento. Prestemos, portanto, o tributo de saudade em memória dos que compõem a linhagem da cadeira número 37, que ora tenho a honra de assumir.

O patrono da cadeira é Manoel Basílio Furtado. Graças à sua competência profissional e qualidades humanas, este clínico notável fez-se querido e respeitado por seus contemporâneos . Sua obra “é um dos belos monumentos da ciência em nosso país, notadamente na parte relativa à zoologia, à antropologia e arqueologia indígenas”, como assinalou Aníbal Matos. Na qualidade de correspondente científico e auxiliar do Museu Nacional, enriqueceu-o com preciosas contribuições. No biênio 1868-1869, exerceu mandato parlamentar. Depois, nenhum convite foi capaz de retirar do convívio da família este cientista que, desde os tempos de seminarista em Mariana e no Caraça, conhecia e amava profundamente os clássicos latinos.

O fundador da cadeira é Olympio de Araújo. Poeta, teatrólogo, jornalista, defendeu as idéias de Baden Powell, pai do escotismo. Enfrentou ferrenha oposição paterna no caminho do aprimoramento intelectual. Atraído pela política, exerceu vários cargos de âmbito local até alcançar um mandato na Câmara Estadual, de 1903 a 1906, como representante da Zona da Mata, especialmente da cidade de Rio Novo.

Na Velha República, em que coronelismo, enxada e voto sustentavam o poder, ele antevia na agricultura, devidamente modernizada, a solução para nossos problemas econômicos, Dentre outras medidas, propôs a contratação de especialistas para ministrar o ensino agrícola no interior mineiro.

Olympio de Araújo publicou Aquarelas (contos), Sorte Única (comédia), Noções de Geografia , Trovas Plangentes e Palmira de Araújo.

Educador autêntico, este homem íntegro e brilhante terminou seus dias modestamente, como diretor do Grupo Escolar de Rio Novo, sua terra natal.

Primeiro ocupante da cadeira 37, Aníbal Matos tornou-se uma referência nas letras e nas artes em Minas Gerais, e particularmente em Belo Horizonte.

Fluminense de Vassouras, teve formação humanística no Rio. As láureas do currículo escolar se multiplicariam nos salões de artes de que viria a participar. Em 1913 foi convidado pelo presidente do Estado, Chrispim Jacques Bias Fortes, para atuar no desenvolvimento das atividades culturais mineiras. Impressionado por nossa paisagem, fixou-se definitivamente na capital, palco de sua capacidade criadora. Da fundação de cursos de desenho e pintura, exposições e incentivos a jovens vocações artísticas, chegou à instituição da Escola de Belas Artes de Minas Gerais, futuro celeiro de valores, e da Sociedade Mineira de Belas Artes, promotora de dezenas de exposições de artistas mineiros no Rio e em São Paulo.Ao lado de intensas atividades de fomento das artes, fundou o Centro do Patrimônio Histórico e Artístico, destinado à proteção das obras de arte tradicionais do Estado. Em 1922, realizou a primeira exposição de arte moderna de Minas Gerais e, em 1934, criou a Academia de Ciências, incumbida das comemorações do centenário do pesquisador Peter Lund.

Diretor, por três vezes, da Escola de Arquitetura de Minas Gerais, lecionou no Instituto de Educação e foi inspetor do ensino de desenho.

Também fundou a Biblioteca Mineira de Cultura, além de assinar crônica diária e crítica teatral e de belas artes no Diário de Minas.

Poeta e teatrólogo, deixou mais de cem livros e opúsculos de poesias, teatro, romance, memórias, teses, estudos e conferências. Eleito para a Academia Mineira de Letras em 1924, presidiu a entidade de 1931 a 1934 e de 1939 a 1942. Faleceu em 1969, aos 83 anos.

Aníbal Matos impregnou-se da alma mineira, expressando-a nas várias formas de sua extensa criação. Suas imagens de Minas estão fixadas em textos e telas. Nestas, fazendas, capelas e chafarizes dividem espaço com ipês, carros de bois e figuras humanas que formam o mosaico de nosso povo.

Edgard de Vasconcelos Barros, meu querido e saudoso antecessor , nasceu em Guiricema, então distrito de Visconde do Rio Branco, em 31 de dezembro de 1912, faleceu em Belo Horizonte no dia 31 de maio de 2003. Era filho de Sebastião de Vasconcelos Barros, formado pela Escola de Farmácia de Ouro Preto, e Maria Graça de Vasconcelos, sobrinha de Arthur Bernardes. De seu casamento com Irene de Vasconcelos Barros nasceram José Antônio, fraterno amigo, ora compondo a mesa desta solenidade e casado com Bethânea, minha conterrânea e irmã de minha cunhada Beatriz; Paulo Henrique, Carlos Roberto, Luis Alberto, Fernando Augusto e Antônio Márcio. A família já emprestara a Minas outros filhos ilustres, como Bernardo, Diogo, Salomão e Sílvio Vasconcelos, além do Cardeal Carlos de Vasconcelos Mota, que ocupou a cadeira número l desta Academia.

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especializou-se em Planejamento Rural na Universidade Hebraica de Jerusalém. Mestre pela Universidade de Wisconsin, doutorou-se em Sociologia Rural na Universidade Federal de Viçosa, título então inédito em toda a América Latina. Advogou e serviu Minas como deputado estadual, por duas legislaturas.

Durante 40 longos anos, atuou na Universidade Federal de Viçosa – na cátedra e na orientação de estudantes de pós-graduação, além de ministrar o primeiro treinamento de extensionistas que se espalhariam por todo o País. Suas pesquisas conduziram-no ao deserto de Neguev, onde focalizou uma tribo de árabes nômades de origem otomana. Sua obra – múltipla, ampla e consistente, constitui-se de muitos livros, incontáveis discursos e conferências, artigos em revistas e jornais, no Brasil e no exterior.

Sua tese, que aborda contatos diferenciais entre serviços sociais em quatro comunidades rurais brasileiras, é editada em 1955 , em inglês, pela Universidade de Wisconsin, por onde publicou também monografias e pesquisas realizadas em comunidades rurais do México, da América Central e do Brasil. A Universidade Hebraica publicou Social Planning e conferiu-lhe o título de doutor. A UFV editou-lhe a rica produção técnico-científica, resultado de uma vida dedicada ao magistério.

A tese de concurso – O Problema da Liderança e do Serviço Social Rural –- é um marco em sua obra. Os temas associados à liderança, ao status, à comunicação e ao poder atestam seu talento pioneiro e arguta competência.

Fernando Correa Dias, eminente mestre, testifica que Edgard conceituou o Líder quando nem se pensava em sua configuração.

Sociologia Rural, de 1977, oferece uma compreensão da matéria sem conformismos éticos ou alheios ao quadro social brasileiro.

Princípios de Ciências Sociais para a Extensão Rural trata do processo de mudança face aos traços culturais estratificados da comunidade. Seguro guia para a atuação do extensionista, antecipa o dilema entre estrutura formal e informal, hoje tão familiar na teoria das organizações e nas ciências sociais.

Edgard produziu também uma série de festejadas monografias, ensaios e trabalhos literários. No início dos anos 40, arrebatou o “Prêmio Machado de Assis” da Academia Brasileira de Letras, abordando a obra machadiana.

Ainda estudante de Direito, manejando dons de exímio articulista, iniciou, n´O Correio da Manhã , incansável pregação pela educação, que retomou, anos mais tarde, no Estado de Minas. Outros jornais acolheram sua combativa e lúcida abordagem de temas da atualidade. Publicou apreciados trabalhos sociológicos e de pesquisas sociais no Brasil e do exterior.

Eram, ao todo, 17 irmãos. Família grande? “Na medida: nem sobrando nem faltando...”, garantia Seu Tatão. Embora Edgard fosse o quinto, só Olga, a primogênita, o superava na liderança da grande família. Paciente no ouvir, parcimonioso no falar, fez-se autorizado mediador. Andava léguas para ver um amigo. Aos mais distantes, alcançava com poderosa torrente epistolar.

Espécie de inspetor geral, supervisionava escovação de dentes, capina de horta, deveres escolares e lazer, sem descuidar-se da leitura e da escrita, seus prazeres maiores. Ali, naquele bando alvoroçado, talvez tenha começado a compreender e exercitar a liderança em estruturas sociais complexas.

Menino ainda, descobriu Bilac e Castro Alves. Na biblioteca de Antônio Vilas Boas, forjou sua estrutura literária e descobriu a vocação para as ciências sociais e para o direito. Com o pai aprendeu ser a verdade, a qualquer preço, a única atitude do homem.

Conciliador, persistente e brilhante, jamais se jactava. Como disse o

Presidente Murilo Badaró, “...chamava a atenção sua modéstia, ele que tantos títulos intelectuais e honoríficos tinha para ostentar”.

O tio Padre Levy infundiu-lhe o gosto pelo Latim e pelos clássicos. A rua, especialmente a “Rua Seca”, complementou os livros. Os casos calungas, benguês e cabindas da Maria Caetano transfiguravam-se em poemas.

Bom de bola, vira promessa como Canhotinho. Mas o Sargento do Tiro de Guerra lhe profetiza tuberculose certa se não deixar o futebol. Menos bola, mais leitura, mais preparo. Inspirado em Vilas Boas, futuro ministro do Supremo, Edgard entra para a Faculdade Nacional de Direito, no Rio.

Lá, em plena rua, tocaia e aborda Irene. Enredada pelo sedutor “magricelo”, ela acaba entrando na igreja da Glória de véu e grinalda.

Em Viçosa, ganham e criam seus seis filhos, motivo de orgulho e alegria.

Ainda estudante de Direito, começara a lecionar no famoso Ginásio de Viçosa. Logo, ensina também nos cursos vestibulares da Escola Superior de Agricultura e Veterinária.

Em 1936, convidado Dr. John B. Griffing, Edgar assume a Secretaria Geral da Escola de Agronomia, que já se projetava em toda a América Latina.

Aprende inglês e envereda-se pelas ciências sociais, que o Direito apenas bordejava.

Orçamento apertado, decide advogar.Talhado para o cível, fulgura como orador no júri.

Já na condição de titular da cátedra de Ciências Sociais, recém-criada, saúda Gabriela Mistral em sua visita à Escola, estabelecendo com ela contato transformador. O estudo da cultura andina inspira-lhe as aulas práticas em pequenas comunidades do município.

No salto para a Sociologia Rural, Durkheim e Max Weber ganham o tempero de Emory Bogardus, ex-aluno de Griffing que pontua suas conclusões científicas em cada “caso” enfocado.

A literatura é saboroso contraponto.Em Vieira, Machado de Assis, Aristóteles, Platão e Ovídio marca com vermelho ou azul os argumentos favoráveis ou contrários a determinado conceito, tudo acrescido de engenhoso sistema de pontuação, de uma a cinco estrelas. Do resto incumbe-se a prodigiosa memória.

Impressiona os colegas de magistério. Para um ex-reitor, era “aquele que me fez conservar os pés na roça, mesmo andando no asfalto”. O saudoso Prof. José Secundino São José encheu Seu Tatão de orgulho ao lhe garantir, naquele fraseado meio matuto: “O Edgarzinho é um professor danado de bom”.

Pedro Vidigal exalta-lhe o talento de Professor, Cientista, Político, Prosador, Poeta, Ensaísta e Orador, sem esquecer as famosas cartas. E ressalta-lhe a vida exemplar entre os poderosos instrumentos na realização de seu destino.

Com bolsa de mestrado na Universidade de Wisconsin, parte com Irene, garantia de sucesso nos dois anos de intensa produção. De volta ao Brasil, candidata-se à Cátedra de Sociologia Rural da UFV. Florestan Fernandes, da USP, num reconhecimento ao pioneirismo de Edgard, desiste de concorrer.

Dentre as muitas premiações recebidas, destacam-se as do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, e do Brasil, a Grande Medalha da Inconfidência, a Medalha Recuerdo, da Universidade Hebraica, a Comenda do Mérito Legislativo, em Grau Especial, da nossa Assembléia.

Nada, porém, se comparava à alegria de escrever.

A vida, no entanto, reservou-lhe tristezas e sofrimentos. Perder Irene,a companheira de sempre e terna amante, foi prova terrível, sobretudo por sobrevir à morte prematura de Paulo Henrique, seu segundo filho, cujo vibrante entusiasmo e criativa inteligência marcaram sua contribuição na assessoria do Ministro Paulinelli.

A Academia, realização de antigo sonho, foi também poderoso lenitivo.

Estimulado pelo Prof. Cândido Martins de Oliveira, então Juiz de Direito da comarca de Viçosa e futuro presidente desta Casa, candidatou-se à Cadeira 37. Fundamental para sua eleição foi o apoio de Vivaldi e Edison Moreira, inseparável companheiro de caminhadas literárias. Sob a influência de seus pares, começa a sistematizar formidável coletânea de poemas que transbordavam de seu escritório. Alguns deles compõem “Irene”, seu último livro, publicado para, nas suas palavras, “fixar a doçura e a grandeza com que sempre me estimulou nas lutas que travamos juntos”.

A Cadeira 37 da Academia Mineira de Letras foi, no testemunho de seus familiares, o prêmio mais querido de Edgard, de que ele desfrutou com a modéstia de sempre – mas com intensa, justa e incomparável alegria!

Senhoras e Senhores,

Aqui chego pela democrática e generosa vontade dos imortais que ora me acolhem, talvez sensibilizados mais por meu impertinente entusiasmo do que por rigorosa comparação de méritos. Não consigo expressar todo o orgulho, toda a satisfação de ser recebido na intimidade desta Casa de tantas tradições e inesgotáveis possibilidades.

Meu coração canta louvores, minha alma se cobre da mais pura alegria, da mais límpida gratidão – a cada um, a cada uma, que de tantos modos me ajudou pelos caminhos desta vida que já passou do meio dia, mas anseia por incontáveis alvoradas.

Caro confrade e fraterno amigo Acadêmico Márcio Garcia Vilela, agradeço-vos pelas palavras generosas, pela calorosa acolhida a este cenáculo da imortalidade. Agradeço-vos, sobretudo, pela sempre boa e já antiga amizade, que tanto prezo e quero melhor cultivar.

Ao longo desta vida, por muitas vezes nossos caminhos se cruzaram, por longos trechos seguiram paralelos –dos bancos universitários ao serviço público, até à nossa Procuradoria Geral do Estado, onde fomos colegas e nos aposentamos. Mercê do reconhecido talento e de inexcedível vocação para servir, ocupastes mais elevadas – Diretor do antigo Etra e Secretário de Estado da Fazenda, para ficarmos somente em dois exemplos.

Juntos, fizemos concurso para o que era então o mais alto cargo de carreira do Serviço Público Estadual, sendo, felizmente, aprovados.

Espero que este reencontro possa aprofundar afetuoso convívio com um amigo em quem sempre admirei a inteligência arguta e a integridade de caráter, qualidades a que pude acrescentar, em tempos mais recentes, como objeto de minha admiração, o refinado gosto literário e o sofisticado estilo de escrever.

Dever-vos-ei sempre, distinto confrade e querido amigo, esta fraterna acolhida na Casa de Alphonsus de Guimaraens.

Senhoras e Senhores,

Deste cume onde me encontro, posso contemplar os lugares de onde vim. E mirar o horizonte que me espera. Na saudosa lembrança de meu pai, beijo minha mãe, mulher de fibra admirável e alma leve que, após criar 15 filhos, curar umbigo de muitos netos, se multiplica agora em amplo arco de amoroso apoio, que vai de creche a asilo, passando por júri de escola de samba e mutirão comunitário. Com Vânia, que voltou a ser Damata Pimentel, partilho Paulo Sérgio e Ana Cláudia, amados filhos dos nossos sonhos. E uma bela penca de netos, que nomeio e abençôo: Davi, Rachel e Daniel; Julinha, Alice e o esperado Miguel. Vânia será sempre credora de meu carinho e gratidão pelos mais de 30 anos que passamos juntos e, especialmente, pelo estímulo que dela sempre recebi.

A Kátia Chaves, agora também Romano, a esperança de tempos ditatados no sonho de descobertas e realizações. A cada um dos meus irmãos, cunhados e sobrinhos, que não vou nomear, mas que abraço com o carinho de sempre, a renovada alegria por mais esta comunhão.

Aos companheiros e companheiras de hoje, de ontem e de sempre, também dedico esta vitória. Dedico-a, igualmente, aos que batalham por nossa cultura popular, afirmação e força da gente no mar globalizado.

Senhores e Senhoras,

Do cume em que me encontro, repito, peço a Deus que abençoe sempre meu caminho. Sob a potente aura desta Casa, que prometo honrar em cada gesto, espero que o escrever nunca termine. E que a luz da inspiração a cada passo me ilumine.

Iniciado no ritual que ora termina, possa eu, como águia altaneira, recolher-me na gestação do novo. Na busca de outros vôos, trocarei penas e garras para então lançar-me ao amplo céu que me espera.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Bastos Tigre - Sintaxe Feminina

SINTAXE FEMININA

Leio: "Meu bem não passa-se um só dia
Que de você não lembre-me"... Ora dá-se!
Mas que terrível idiossincrasia!
Este anjo tem as regras de sintaxe!

Continuo: "Em ti penso noite e dia...
Se como eu amo a ti, você me amasse!
"Não! É demais! Com bruta grosseria
A gramática insulta em plena face!

Respondo: "Sofres? Sofrerei contigo...
Por que razão te ralas e consomes?
Não vês em mim teu dedicado amigo?

Jamais, assim, por teu algoz me tomes!
Tu me colocas mal! Fazes comigo
O mesmo que fizeste com os pronomes!"...

Simon Schwartzman - Tempos de Capanema

TEMPOS DE CAPANEMA

Simon Schwartzman
Helena Maria Bousquet Bomeny
Vanda Maria Ribeiro Costa


Introdução à segunda edição

Gustavo Capanema faria cem anos em agosto de 2000: tempo de virada do século, de quinhentos anos do Brasil. É um momento de reexame do passado e de indagação sobre o futuro, do qual a reedição deste livro faz parte: por que somos como somos? Como seremos daqui por diante? Quanto de nosso futuro está determinado ou contido no nosso passado?

Este reexame não decorre de uma simples efeméride, seja o centenário de Capanema, os cinco séculos do Brasil, ou a chegada do novo milênio. A imagem do fim do século XX foi a queda do muro de Berlim em 1989, que não só marcou o fim do mundo polarizado da guerra fria, como também simbolizou a implosão de todo um universo de concepções e interpretações a respeito do passado e do futuro de nossa vida em sociedade, sem que tenhamos ainda clareza sobre o que virá em seu lugar. Também no Brasil estamos entrando em um novo tempo, não só pela influência do que acontece além das fronteiras, mas também pelo esforço de deixar para trás um século de alternâncias entre experiências autoritárias que se frustram e aberturas democráticas que não atingem a plenitude, e que não têm permitido que o país atinja os padrões mínimos de educação, justiça social e produção de riqueza que compatíveis com o mundo moderno.

Publicado em 1984, como o primeiro resultado das pesquisas no arquivo Gustavo Capanema, depositado no CPDOC em 1980, este livro já antecipava um dos temas importantes deste reexame, o do relacionamento entre os intelectuais e o autoritarismo político.

Os anos Capanema ficariam na lembrança como um momento da história republicana brasileira em que política, educação e cultura estiveram associadas de forma singular e notável, e os arquivos revelaram um paradoxo que exigia um exercício cuidadoso de análise e interpretação. Aos decretos e procedimentos afinados com a política autoritária do Estado Novo, sobrepunham-se falas de uma correspondência privada e pessoal de uma intelectualidade de todos nós conhecida, identificada com as causas sociais e de modernização cultural, e admirada e cultivada como patrimônio cultural e afetivo do país. Entre esses intelectuais e artistas estavam Carlos Drummond de Andrade, Alceu Amoroso Lima, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Heitor Villa Lobos, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Gilberto Freyre, Cândido Portinari, além dos educadores que marcariam a história brasileira como pioneiros e formuladores dos projetos políticos e institucionais que deram vida ao debate educacional no país desde os anos 1920, como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e o próprio Francisco Campos, envolvido com as reformas educacionais em Minas Gerais desde os anos 1920 e primeiro ministro a ocupar a pasta da Educação em 1930.

Como entender que figuras tão ilustres, e de horizontes aparentemente tão abertos, convivessem com políticas de cunho autoritário e repressor, como o fechamento da Universidade do Distrito Federal em 1939, a criação do movimento Juventude Brasileira, de inspiração inequívoca no fascismo em voga na Europa dos anos 1930, e ainda a perseguição aos intelectuais de pensamento liberal, identificados pelas lideranças conservadoras do Estado com aos movimentos de esquerda? Por um lado, como os arquivos revelam, particularmente na correspondência de Carlos Drummond e Mário de Andrade, esta não era uma convivência tranqüila, mas, ao contrário, cheia de tensões e ansiedades. Mas, por outro, a idéia de que os regimes fortes de esquerda e de direita poderiam abrir caminho para um futuro melhor sempre atraiu intelectuais brilhantes em todo o mundo, de Leon Trotsky a Martin Heidegger, passando por André Malraux e Maurice Merleau-Ponty, sem falar em literatos como Pablo Neruda, Miguel Ángel Asturias e Jorge Amado, - e o Brasil não seria exceção. Essa proximidade não passaria sem deixar seqüelas importantes, entre as quais as grandes dificuldades que tantos entre nossos intelectuais encontrariam para entender e defender, ao lado dos direitos sociais, os valores do pluralismo, dos direitos individuais e da ordem jurídica democrática.

Faz parte também deste reexame um novo olhar para os temas da educação e da cultura. É curioso como, hoje, esses temas parecem recuperar a importância que tinham nos anos 1920 e 1930, quando os debates sobre a educação e a cultura brasileiras mobilizavam os intelectuais, incendiavam as disputas entre leigos e católicos e ocupavam espaços nos jornais.

Naqueles anos, quando ainda não se falava de subdesenvolvimento e dependência, e sim de atraso e civilização, acreditava-se que, pela educação, se formariam o caráter moral e a competência profissional dos cidadãos, e que isto determinaria o futuro da Nação. Os movimentos e a disputa pela educação, e sobretudo seu controle pelo Estado ou pela Igreja, eram vividos como uma luta pela própria alma do país. Leigos e católicos concordavam que, sem educação, essa alma não existiria. Ela precisava ser construída, tirando-se o país da barbárie, do atraso e da indigência moral. O que se disputava era quem cuidaria da formação da criança que aprendia suas primeiras letras, o que fatalmente a destinaria para o Bem ou para o Mal, segundo a visão de mundo de cada um.

Como este livro revela, a educação pública, que até os anos 1930 praticamente não existia, começou a ganhar forma nos tempos de Capanema, e cresceu deste então de forma lenta e precária. A Constituição de 1946 previa a votação uma "Lei de Diretrizes e Bases da Educação" que deveria dar um novo sentido e formato à educação do país. O Brasil não conhecera, no entanto, outra maneira de lidar com a educação além da que fora criada no governo Vargas, e a presença de Gustavo Capanema no Congresso, depois de longa permanência no Ministério da Educação, inibiu as discussões que tomavam como ponto de partida o projeto elaborado sob sua gestão no período de 1934 a 1945. Em pauta desde 1948, por iniciativa de Clemente Mariani, ministro da Educação de Dutra, a lei só seria votada em 1961, em meio a um debate que reproduzia, até mesmo nos personagens, as disputas de 30 anos antes. A principal diferença era que, nos anos 30, católicos e leigos disputavam o controle da educação pública; nos anos 1960, a disputa aparecia como um confronto entre a educação pública, que se pretendia universal e gratuita, a proporcionada pelo Estado, e a educação privada, defendida como um direito das famílias, às quais o setor público deveria apoiar. Anísio Teixeira e o grupo da Escola Nova de um lado; Carlos Lacerda e Dom Hélder Câmara de outro, com a Igreja Católica defendendo a primazia dos direitos da família e os interesses das escolas católicas, que respondiam por parcela significativa do ensino privado oferecido no país. No final dos anos 1950, precisamente em 1959, Fernando de Azevedo redige outro Manifesto à Nação, "Uma vez mais convocados", em alusão ao "Manifesto dos Pioneiros da Educação" lançado em 1932.

Poucos se lembram do resultado dessa disputa, que terminou, nominalmente pelo menos, com a vitória da corrente "privatista," liderada por Carlos Lacerda. Havia o temor de que a nova legislação, ao reconhecer a liberdade de escolha das famílias para matricular seus filhos em escolas privadas, abrisse caminho para a canalização dos recursos públicos para estas escolas, em detrimento da educação pública e leiga. Na prática, o Estado continuou com a responsabilidade da educação pública, que nunca chegou a desempenhar de forma plena. As famílias de classe média e alta assumiram, como sempre fizeram, a responsabilidade pela educação de seus filhos, preparando-os para as melhores escolas públicas secundárias ou superiores ou colocando-os em escolas particulares, a maioria dirigida por religiosos. A Igreja Católica, que nos anos 1930 havia tentado assumir o controle da educação pública do país, limitava-se agora à administração de um conjunto restrito de escolas que, quem sabe, ainda poderiam cuidar da alma das elites.

A partir dos anos 1960, os grandes temas nacionais passaram a ser outros. O que preocupava, agora, eram o desenvolvimento e a industrialização, a dependência e o nacionalismo, as ameaças do populismo e o autoritarismo que acabou se implantando novamente e polarizando o país por duas décadas, deixando como herança as grandes questões da distribuição da renda, da inflação, da dívida externa e da estagnação econômica. Se perguntados, todos concordariam que a educação era importante, assim como é importante o amor materno, e que sem eles nada se poderia fazer. Mas poucos tinham idéias próprias a respeito do que fazer, na prática, com a educação; era algo a ser visto quando os outros problemas tivessem sido resolvidos.

Enquanto isso, a educação continuava a se expandir, impulsionada pelo crescimento das cidades e pela expansão do setor público, dentro das linhas mestras desenhadas nos anos 1930. Para os políticos, em todos os níveis, os sistemas educacionais se tornaram moedas de troca importantes, que permitiam distribuir empregos, contratar serviços e intercambiar favores. Ao mesmo tempo, formou-se toda uma comunidade de professores e professoras, pedagogos, especialistas, funcionários e empresários da educação que faziam congressos, disputavam verbas, continuavam a discutir a importância, os direitos e os espaços da educação pública, privada e religiosa. Esses profissionais se preparavam para reproduzir, depois da Constituição de 1988, os mesmos debates dos anos 1930 e 1960, que deveriam marcar a segunda Lei de Diretrizes e Bases da Educação, idealizada para um novo tempo que chegou a se chamar, por alguns anos, de Nova República. Foi uma batalha que não houve: a Lei de Diretrizes e Bases aprovada pelo Congresso Nacional em 1996 não foi o resultado de um grande debate nacional, e sim da adoção de um substitutivo de última hora apresentado pelo então senador Darcy Ribeiro, que havia estado nas trincheiras da escola pública nos anos 1950 e 1960, mas que buscava então olhar para a educação com outros olhos.

A razão deste anticlímax talvez tenha sido que, paradoxalmente, na medida em que a educação crescia, o tema da educação perdia sentido para grande parte dos próprios educadores. No passado, na tradição dos conceitos pedagógicos da Escola Nova, trazidos por Anísio Teixeira, e das pesquisas educacionais, iniciadas por Lourenço Filho, os educadores se preocupavam com coisas tais como com técnicas pedagógicas, conteúdos dos currículos, psicologia da aprendizagem dos alunos. Professores e professoras acreditavam que tinham uma missão importante a desempenhar e se frustravam quando percebiam que se estavam proletarizando, que não recebiam o reconhecimento social que esperavam, que as escolas contavam com muito poucos recursos e nenhuma autonomia de ação, e que as crianças chegavam a elas, cada vez mais, sem as condições mínimas para um aprendizado satisfatório. Os temas pedagógicos pareciam secundários e irrelevantes, e as questões que passaram a dominar os cursos, congressos, movimentos e publicações dos educadores não eram as da educação enquanto tal, mas questões de natureza sindical - salários, sobretudo - ou política e econômica. Assim, nos anos 1990, passou-se a tratar de temas como os direitos sociais, a globalização e o neoliberalismo, que se traduziam quase que diretamente em opções político-partidárias e eleitorais. Com isso, os educadores se transformaram, de guardiões da alma nacional, e um grupo de pressão como tantos outros, e perderam a capacidade de galvanizar a atenção e o interesse do país.

E no entanto, é justamente neste momento que a educação volta a ser percebida como tendo um papel importante e central. Já não se discute tanto a alma do país - se cívica, leiga ou católica -, e sim o desempenho e sobrevivência do corpo. Como nos anos 1920, a educação deixa de ser tratada como conseqüência e começa a ser vista como causa. Não são mais os educadores, e sim os economistas, muito mais em evidência, que argumentam que a economia só cresce quando há investimento em recursos humanos, e que as desigualdades sociais se devem, sobretudo, às desigualdades de oportunidades educacionais. Internacionalmente, a bandeira da educação deixa de ser monopólio da UNESCO e passa a ser dividida com outras agências como o Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, UNICEF. Empresários que antes apoiavam a educação, no máximo, como caridade, e viviam na prática dos preços baixos dos produtos fabricados com mão de obra desqualificada, agora buscam treinar melhor seus empregados e concordam em contribuir para que as escolas formem melhor seus alunos, e lhes forneçam mão de obra mais qualificada. Esse interesse renovado pela educação chega também aos políticos, que falam de suas realizações e promessas na área da educação para ganhar votos e, quando eleitos, já começam a não usar os ministérios e secretarias de educação como moedas partidárias nas negociações de apoios e de votos.

A grande questão da educação brasileira, hoje, é como transformar o antigo sistema montado pelo Ministério da Educação nos anos 1930, e conservado sem mudanças fundamentais ao longo de quase 60 anos, em um sistema moderno, eficiente, abrangente e adaptado aos novos tempos. Este livro ajuda a entender parte do problema, que é o da origem de muitas práticas que hoje podem nos parecer óbvias e naturais, mas que foram opções de determinada época e momento, nunca mais revistas. Coisas como a centralização administrativa, que faz das secretarias de educação de estados como São Paulo e Minas Gerais, com centenas de milhares de funcionários, estruturas quase impossíveis de administrar; a prioridade dada aos títulos e diplomas sobre os conteúdos; a crença no poder dos currículos definidos no papel e controlados por sistemas burocráticos e cartoriais; a existência inquestionada de instituições vetustas como os antigos conselhos oficiais de educação; a predominância do formalismo e do ritualismo nos processos pedagógicos; e o isolamento que acabou ocorrendo entre o mundo da educação e o mundo real, esvaziando o sentido do primeiro e limitando seus recursos. As novas palavras de ordem são envolvimento da comunidade com as escolas, descentralização, autonomia, iniciativa local, avaliação, uso de novas tecnologias, ênfase nos conteúdos. Os temas da alma ressurgem com novas roupagens, como a preocupação com o meio ambiente, o vínculo das escolas com as comunidades, e os direitos e deveres da cidadania. É uma revolução em andamento, que vem ocorrendo tanto no nível federal como em muitos estados e municípios, e que já se reflete nos grandes números, com a explosão da educação média e o aumento nos anos de escolaridade das crianças, mas que ainda está longe de adquirir forma e se completar.

A cultura, nos tempos de Capanema, também era vista como campo de construção da alma nacional. Nos anos 1920, o modernismo havia vislumbrado a possibilidade de construção de um país mais autêntico, menos mimético, e essa busca do "Brasil Real" na literatura, na pintura e na música se mesclava com a busca de um "Brasil real" na política e na vida em sociedade, onde o formalismo da república oligárquica pudesse ser substituído pela construção de um Estado nacional forte e voltado para o progresso e para o futuro. Essa aproximação entre a busca da autenticidade e o autoritarismo político era dominante naqueles anos, em que as democracias pareciam condenadas ao fracasso, e os autoritarismos de esquerda e de direita se confundiam em nome dos valores, supostamente mais altos, da cultura e da nacionalidade. Capanema, inspirado por Francisco Campos, apoiado em Carlos Drummond e Alceu Amoroso Lima, procura construir seu projeto cultural em cima dessa ambigüidade. Por um lado, havia que valorizar os homens de letras, as artes, e criar para isto um mecenato estatal. Por outro, havia que produzir os símbolos culturais do Estado Novo, que substituíssem a iconografia da República, que mal conseguira desmontar a hagiologia do Império. Os símbolos do novo Brasil buscariam suas raízes nos mitos da cultura indígena e nas epopéias dos bandeirantes; os monumentos do passado deveriam ser recuperados e preservados na memória nacional; e o novo país se consubstanciaria nas paradas cívicas, nos grandes projetos arquitetônicos de Piacentini e Lúcio Costa, nas iconografias nativistas de Portinari, e nos grandes concertos orfeônicos de Villa Lobos. As correspondências de Drummond, Mário de Andrade e Portinari, neste livro, mostram o lado escuro deste projeto ambicioso, que não seria suficiente, no entanto, para desfazer a imagem que ficou dos tempos de Capanema como uma época de ouro do mecenato cultural.

A principal realização do Estado Novo na área da cultura talvez tenha sido a implantação de um sistema de recuperação e preservação do patrimônio artístico e cultural do país, que daria testemunho do passado mais autêntico e da identidade nacional que se buscava construir. Tão forte foi a atmosfera que envolveu a política de preservação do patrimônio que, até hoje, aquele período é lembrado como a "idade de ouro" do patrimônio brasileiro. Era o projeto ambicioso de organização e sistematização da cultura brasileira em todas as suas manifestações que entusiasmava Mário de Andrade e Rodrigo Mello Franco de Andrade e que encontraria outro breve momento de brilho nos anos 1970, sob a liderança do designer Aloísio Magalhães.

Para a cultura, como para a educação, cabe indagar em que medida os pressupostos e os formatos institucionais criados naqueles tempos ainda subsistem, e se deveriam ser recuperados ou substituídos por outros supostos e instituições. A "cultura" do antigo Ministério da Educação e Cultura se transformou hoje em um Ministério próprio, que já não tem a missão de construir os símbolos e a mitologia da nacionalidade e se dedica, sobretudo, a manter ainda viva a chama do mecenato, mas sem um objetivo claro e definido. Em parte, trata-se de recuperar e reativar as tradições e costumes de populações empobrecidas e marginalizadas, não para construir a partir daí uma nova Cultura nacional, como pensaria talvez Mário de Andrade, mas simplesmente, para recuperar o sentido de identidade e respeito próprio dessas populações.

A rotina do patrimônio, sucessivamente identificada em uma nova sigla que é definida em uma seção do Ministério da Cultura, é hoje mais uma rotina burocrática e funcional do que a expressão de idéias e projetos ou a atualização de dinâmicas mais sintonizadas com o novo perfil de sociedade metropolitana e da informação que a sociedade brasileira vem adquirindo. A recuperação e preservação do patrimônio histórico são, cada vez mais, iniciativas associadas à indústria do turismo, e não à preocupação com a recuperação da memória nacional. Existem mecanismos para o financiamento de produtos culturais para o mercado de consumo - sobretudo filmes e teatro - cujo principal propósito parece ser sua própria existência como indústria cultural, e não mais o estímulo ao fortalecimento de conteúdos culturais específicos.

Há quem lamente esta pulverização e comercialização da cultura, e sinta falta dos projetos ambiciosos, ainda que frustrados, do passado. Há quem acredite, ao contrário, que existe uma nova cultura em formação, muito mais fragmentada e complexa do que a dos projetos do passado, combinando a vida local com o mundo global, a língua nacional com a língua franca das comunicações, o mundo das idéias e o mundo do trabalho, e dando prioridade a valores individuais e interpessoais, como os da competência, responsabilidade, criatividade, solidariedade e pluralismo, e não mais aos valores do Estado, da Nação e da Cultura.

Voltar aos tempos de Capanema é voltar, de alguma forma, às matrizes de valores, idéias e instituições que ainda perduram em nosso inconsciente, encarnados em nossas leis e instituições, e que nos impedem de saber se realmente ainda as queremos, ou se devemos procurar outros rumos e alternativas.

Olavo Bilac - Obras reunidas: crítica

OBRAS REUNIDAS: CRÍTICA

Léo Schlafman


Quase um século após sua morte, a publicação das obras reunidas serve de estímulo para reavaliar o poeta que, objeto de entusiasmo popular na sua época, tornou-se o alvo preferido dos modernistas (Obra Reunida - Olavo Bilac - Organização de Alexei Bueno. Nova Aguilar, 1.078 páginas)

Oitenta anos separam a morte de Olavo Bilac da publicação ônibus de seus livros. É quase um século - mas século de grandes transformações estéticas e políticas. O poeta, que nasceu durante a Guerra do Paraguai e morreu, com a belle époque, no fim da Grande Guerra, reapresenta-se ao público em plena guerra da Chechênia, depois do desmoronamento do império soviético. Mas nunca deixou de ser publicado avulsamente, e lido, analisado nas escolas, e de tal forma que muitos de seus versos hoje fazem parte da memória popular, como "Ora (direis) ouvir estrelas!" ou "Última flor do Lácio, inculta e bela, / És a um tempo, esplendor e sepultura".

Sempre foi transcrito com fartura nas antologias, entronizado na liderança do movimento parnasiano, criticado e defendido, depois da morte como em vida. Mas, como disse T. S. Eliot, de tempos em tempos, em cada 100 anos mais ou menos, é desejável que algum crítico apareça para rever o passado e dispor os poetas e os poemas em nova ordem.

Segundo Eliot, nenhum poeta nem qualquer outro tipo de artista tem seu significado completo sozinho. Sua apreciação é a apreciação da relação com os poetas e artistas mortos. Não se pode avaliá-lo isoladamente. Quando nova obra de arte é criada, algo novo ocorre com todas as obras que a precederam.

O ciclo a que Bilac pertenceu chocou-se de frente com o fogo de barragem da Semana de Arte Moderna. De fato, quatro anos depois da morte dele, em 1918, os modernistas, em 1922, que, na fórmula de Ivan Junqueira, não sabiam bem o que queriam, embora soubessem perfeitamente o que não queriam, escolheram-no como alvo de predileção, abalaram-lhe o prestígio, e tudo "porque sua poesia não interessava em absoluto ao projeto modernista, e não porque o julgassem mau poeta".

O verso livre já destronara soneto, alexandrino e rimas em outras plagas, mas hoje se sabe, com o distanciamento crítico que só o tempo proporciona, que nenhum verso é livre para o homem que deseja fazer bom trabalho. Grande quantidade de prosa de má qualidade tem sido escrita, desde então, com o nome de verso. E vice-versa. Apenas um mau poeta poderia considerar o verso livre libertação da forma.

No entanto, a clivagem entre parnasianismo e modernismo enraizou-se para sempre. Basta comparar a exaltação militar de Bilac, na campanha pelo alistamento obrigatório, com o pacifismo de Clã do Jabuti, de Mário de Andrade, dez anos depois, para constatar o abismo que a revolução modernista cavou entre as duas gerações. O abismo teve várias conseqüências. Gonçalves Dias, Castro Alves e Olavo Bilac foram os últimos na literatura brasileira a despertar ao mesmo tempo entusiasmo culto e popular. Implantou-se entre o grande público e as artes, incluindo a poesia, um mal-entendido, uma dissociação, até hoje não suficientemente esclarecida.

Num banquete monstro de que foi alvo, em 1907, Bilac lembrou que quarenta anos antes não havia propriamente homens de letras no Brasil. "Havia estadistas, parlamentares, professores, diplomatas, homens da sociedade ou homens ricos, que, de quando em quando, invadiam por momentos o bairro literário..." Na fase seguinte, poetas e escritores que desejavam ser apenas poetas e escritores cometeram o erro de mostrar desdém pela consideração que a sociedade lhes recusava. A geração de Bilac, e ele principalmente, transformou o que era então passatempo em profissão, culto, sacerdócio.

Viemos trabalhar cá em baixo, no seio do formigueiro humano

Hoje em dia não há banquetes monstros para poetas. O formigueiro humano sequer gosta da poesia que lê, alegando que não a entende. Já Bilac, da estréia ao crepúsculo, revelou-se antes simples do que complicado, e isto talvez seja uma das causas da extrema receptividade que tiveram e ainda têm seus versos. José Veríssimo criticava em Bilac a falta de extensão e profundeza, mas reconhecia feição descritiva, pompa, o brilho novo de sua forma, feitos para agradar, dando sempre "impressão de acabado, de perfeito". Machado de Assis, em A Nova Geração, definiu a poesia parnasiana como uma inclinação nova nos espíritos, sem se utilizar ainda da expressão parnasiana. O parnasianismo renegou o romantismo, e exaltou uma arte fria ("Serás para mim uma deusa, / (...) inviolável e fria", escreveu Bilac), impassível, intelectualizada, contra o transe, a participação e a emotividade - em suma, a hipertrofia do eu. Em Profissão de fé Bilac pregou o trabalho formal, o culto ao estilo: "Torce, aprimora, alteia, lima / A frase; e enfim, / No verso de ouro engasta a rima, / Como um rubi." Queria que a estrofe, cristalina, "Dobrada ao jeito / Do ourives, saia da oficina / Sem um defeito".

No correr da história literária, os parnasianos da primeira hora, como Alberto Oliveira, Raimundo Correia e Bilac (a "trindade parnasiana") têm sido identificados como românticos retardatários. Filiavam-se ao parnasse francês (Gautier, Bainville, Lisle, Baudelaire e Hérédia). Bocage superou Camões na veneração parnasiana brasileira. As obras bem escritas são eternas. Aboliu-se o mistério na poesia. Evitavam-se recursos musicais, como aliterações, homofonias, ecos, expressões de poder encantatório. Repudiava-se o contexto medieval e se proclamava a superioridade da vida, da saúde, da sensualidade, da objetividade, do conhecimento do mal e do homem, sobre a morte, a doença, a melancolia, o sentimentalismo, a objetividade, a inocência e Deus (João Pacheco, em O Realismo).

Mas a impassibilidade parnasiana não se manifestou totalmente nos poetas brasileiros, sempre atormentados pela incontinência da sensibilidade nacional, o brilho da paisagem, a exigência do sensualismo. O próprio Bilac, citado por Pacheco, mais de uma vez reclamou, em versos, da asfixia imposta pela escola, demasiadamente atada à prisão da lógica: "O pensamento ferve, e é um turbilhão de lava: / A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve..."

Manuel Bandeira, em Poemeto Erótico, mostrou que isto não acontecia sempre:"Teu corpo claro e perfeito, / Teu corpo de maravilha, / Quero possuí-lo no leito / Estreito da redondilha." Pode-se, portanto, como fez Bandeira, e Bilac tantas vezes, tirar proveito das limitações da forma, quando se quer. Mário de Andrade, em O Empalhador de Passarinho, disse, a propósito de Bilac: "A escultura das palavras também tem suas belezas. A solaridade, a luz crua, a nitidez das sombras curtas de certos verbalismos enfunados, pelo próprio afastamento em que estão da verdadeira poesia, têm seu sabor especial, pecaminoso."

Ao estrear, aos 23 anos, com Poesias, Bilac já estava perfeitamente enquadrado no rigor da forma, e com a sensualidade à flor da pele. Na adolescência, encharcou-se dos ecos da Guerra do Paraguai ("Todo esse espetáculo de heroísmo dominando a vida nacional, e por muitos anos alimentando a altivez do povo"). O Rio de sua maturidade era estranho burgo colonial, com quase três quartos de negros. A casa onde nasceu, na Rua da Vala, atual Uruguaiana, pertencia à área que melhor exprimia a fealdade e sujeira da capital. Perto estava a Rua do Ouvidor, com seu singular comércio francês. Conforme descreveu Ledo Ivo, o que dominava o centro urbano era o comércio atacadista de aspecto sinistro. Quando um tílburi corria pelos calçamentos irregulares, os pedestres se colavam às paredes. Passava-se manteiga da Dinamarca no pão de trigo inglês, bebia-se cerveja alemã, comiam-se queijos flamengos na Confeitaria Pascoal, usavam-se os esgotos da City e andava-se em bonde da Botanical Garden. Os cidadãos inconformados reclamavam das loucuras do prefeito Pereira Passos.

Um ano antes da publicação de Poesias (1888) Bilac noivou com Amélia de Oliveira, irmã de seu amigo parnasiano Alberto de Oliveira. O noivado durou pouco. E ela se tornou, para o solteirão empedernido, a inspiradora, a Beatriz - um dos pólos de seu lirismo amoroso. Advogado da vacina obrigatória e do alistamento também obrigatório, republicano de primeira hora, destacou-se contudo por suas inclinações reacionárias. Esteve preso ("Quatro prisões, quatro interrogatórios... / Há três anos que as solas dos sapatos / Gasto, a correr de Herodes a Pilatos" - Em Custódia, sob o pseudônimo Fantasio, soneto não incluído na Obra Reunida) e exilado em Minas, onde conheceu Afonso Arinos, que marcou a segunda etapa de sua poesia ("meu nacionalismo é filho de meu tradicionalismo"). Bebia muito, mas também trabalhava muito. Desde a fundação da Academia Brasileira de Letras deixou de ser boêmio para ser o poeta acadêmico.

O delirante erotismo do poeta

A sensualidade cantada nos versos do parnasiano Olavo Bilac deve muito à poesia de Baudelaire A poesia sensual de Bilac não tinha novidade quanto ao fundo, pois derivava de Baudelaire e do realismo brasileiro. A expressão fácil era ao mesmo tempo elegante ("Cai o céu sobre mim em pirilampos..."). É de longe o mais erótico poeta brasileiro, como demonstrou em Satânia (curiosamente não rimado): "Sobe... cinge-lhe a perna longamente; / (...) / Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura, / Morde-lhe os bicos túmidos dos seios, / Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo / Da axila, acende-lhe o coral da boca / (...). Em Beijo Eterno pede: "Quero um beijo sem fim, / Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!" Em A tentação de Xenócrates, dedicado a Machado de Assis, descreveu Laís, escrava siciliana, como tendo seios como "dois pássaros que pulam / Ao contato de um beijo". Em Última Página dirige-se a uma das namoradas (imaginária?) assim: "... Sentada em meus
joelhos, / Nua, presos aos meus os teus lábios vermelhos, / (Lembras-te, Branca?) ardia a tua carne em flor..." A Lição, soneto não incluído em livro, corresponde ao espírito deletério da época: "Quis amá-la no campo; arranquei-lhe os vestidos, / Pu-la à moda pagã: nua completamente."

O erotismo de Bilac era delirante, fruto talvez de uma perturbação nervosa, da boemia, da perversão. Até mesmo o bandeirante Fernão Dias Pais, O Caçador de Esmeraldas, era o "desvirginador da Terra Brasileira", onde se fartava de amor na carne cheirosa...

Mário de Andrade considerou-o "exímio na pintura da pornocinematografia", alusão talvez aos primórdios do cinema. Do começo ao fim mostrou-se tão sensível à forma da carne como à forma dos sonetos, embora circulassem sobre ele boatos sublinhados pelos epitáfios obscenos em que Emílio de Meneses (no entanto seu amigo, por cuja candidatura à Academia se bateu), em papeluchos deixados sobre mesas de confeitarias, insinuava tendências homossexuais. Um deles dizia, como registra Magalhães Júnior em Olavo Bilac e sua época: "Bilac esta cova encerra. / Choram sacros e profanos... / Muitos anos coma a terra, / A quem comeu tantos ânus!"

Os poemas de Tarde já não provocaram a mesma sensação de Poesias. O mundo era outro. Aproximava-se o surgimento, no Brasil, do modernismo que refletia, sem condescendência, a insatisfação e a iconoclastia. Em nome da "Deusa Serena, / Serena Forma", Bilac se ateve à realidade estética e livresca que, ao aliená-lo, integrava-o paradoxalmente ao seu tempo. Ser homem do tempo, no fim do segundo império e período inicial da república, era ser parnasiano.

Bilac, que nunca escondeu a influência do seiscentista Vieira (em quem se inspirou para escrever o famoso Ouvir Estrelas, cuja primeira publicação tinha uma epígrafe extraída do Sermão da Sexagésima) deixou uma semente que frutificou depois da Semana de Arte Moderna. Manuel Bandeira, em Balada das Três Mulheres de Araxá, cita dois versos de Bilac ("Que outros, não eu, a pedra cortem / Para brutais vos adorardes). Mário Quintana faz ligeira alusão a Bilac no sexto quarteto de Do Cuidado da Forma: "Teu verso, barro vil, / No teu casto retiro, amolga, enrija, pule.../ Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil, / Arredondado e liso como um bule!"

Para Bilac, como para O Caçador de Esmeraldas, o crepúsculo caiu "como uma extrema-unção". Voltando a Eliot: o dever do poeta é só indiretamente voltado para o povo. Seu dever direto é para a língua. Ele morreu com o parnasianismo e a belle époque. Ou foram o parnasianismo e a belle époque que morreram com ele, no Brasil?

(Caderno Idéias, Jornal do Brasil)

Otto Lara Resende - Vista Cansada

VISTA CANSADA

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi o outro escritor quem disse.

Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida de quem não crê que a vida continua. Não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Fugiu enquanto pôde do desespero que o roía – e daquele tiro brutal.

Se eu morrer morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isso: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia sem ver. Parece fácil, mas não é.

O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio. Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê.

Sei de um profissional que passou trinta e dois anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualissimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer. Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em trinta e dois anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência.

O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos. Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas.

Nossos olhos se gastam, no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Otto Lara Resende - O Caminho para o Soneto

O CAMINHO PARA O SONETO
Un rêveur est toujours mauvais poète. (Jean Cocteau)
Vinicius de Moraes estreou em 1933, aos vinte anos, com O caminho para a distância – um livro, a começar pelo título, embriagado pela vertigem das grandes abstrações e das grandes alturas. Com invocações ao Espírito e à Verdade – tudo com maiúsculas –, o poeta reivindica um lugar privilegiado, como ser assinalado e meio esotérico, compassivo para com os homens, mas certamente ainda de todos os homens:

A vida do poeta tem um ritmo diferente.
E a sua alma é uma parcela do infinito distante.
Sua alma sofre "pavorosamente a dor de ser privilegiada". O poeta está comprometido, como um missionário, com "o infinito que ninguém sonda e ninguém compreende":
Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai pisando a terra e olhando o céu.
Na verdade, olhava mais o céu do que pisava a terra, a que se sentia, contudo, atraído por uma incoercível, terrena e já evidente – pelo menos nas entrelinhas – lei da gravidade.

Ao primeiro livro, segue-se Forma e Exegese, que é de 1935, no qual o autor anunciava de cara – em preparo – um romance (O conhecimento do Amor) e novo livro de poemas (A face dos Anjos), dois títulos expressivos e reveladores. Amor e Anjos, ambos com A grande, eram entidades próximas, senão a face de um mesmo e único Mistério (também com M grande). A dedicatória, mantém-se na mesma soberba atitude:


A Jean-Arthur Rimbaud
e
Jacques Rivière
em Deus.
Em Forma e exegese, já está um dos primeiros poemas que Vinicius selecionaria para a sua Antologia poética – "Ausência", no qual o lírico dribla o cipoal de angústias e metafísicas em que o poeta altíssimo andava enredado. Forma e Exegese respira o mesmo estro que O Caminho para a Distância, mas é ainda mais ambicioso, mais altissonante, mais pomposo. O poeta espraia-se num ritmo solene, é um sacerdote que, do alto de sua sapiência, fala à turbamulta, sem com ela confundir-se.

Em 1936, surge Ariana, a mulher, que, segundo o próprio autor, encerra "a sua fase transcendental", sim; mística, nem tanto, a menos que se tome a palavra no sentido vulgar, de alegórico, ou esotérico, e que estará mais próxima de um juvenil mistifório do que de um misticismo contemplativo. A verdade, porém, é que Ariana, mais do que o sotaque antigo, guarda ainda a opulenta retórica da primeira fase e nela assenta como a luva à mão.


A data da mudança que se operou no poeta não pode ser fixada com precisão, mas é fora de dúvida que ele, que só celebrava no altar de Rimbaud e outros clérigos de alto coturno, transitou do reino do sublime para o plano do real. Despejou-se da contemplação narcisista de seus provavelmente imaginários tormentos pessoais. A linguagem, como tinha de ser, desce ao natural, senão ao coloquial. Desaparece os sustenidos artificiosos e os falsetes que não lhe pertenciam. O poeta deixa de fazer pose: cedo enjoa de orgulhosas inquietações mais ou menos postiças e, no seu caso, de uma ênfase muito mais adolescente do que poética. Nessa primeira fase, de que forma e exegese, até pelo título, é tão característica, o ritmo é largo, claudeliano, ou brasileiramente schmidtiano (não nos esqueçamos de Schmidt, editor do livro de estréia de Vinicius, foi, com este, objeto de um longo estudo apologético de Otávio de Faria – Dois poetas). As metáforas, pandas, têm então envergadura condoreira e buscam, aflita e presunçosamente, uma eloqüência que abomina o silêncio e execra o comezinho.

Dentro de um contexto de reação às trivialidades, às piadas e às rastacuerices da onda nordestina, que vinha de 1922, o poeta emposta e alça a voz para contar "mulher desespero", a "que perpetua o desespero humano", o "ser ignorado". O "fardo da carne" acentua os espasmos de uma adolescência literariamente manipulada para encher o seu farnel metafórico. O que lhe importa não é ver o que existe e o cerca. Cuida de entrever mais do que de ver. É um vidente, à maneira de Rimbaud. A inspiração confunde-se freqüentemente com o delírio, ainda que fabricado a duras penas. Além de feroz e altíssimo, como se confessa, o poeta quase imberbe é grave, gravíssimo, até que a aceitação do real o convide a deixar de ser inquilino do sublime, a recolher as velas de sua inspiração. É natural, pois, que a princípio a mudança lhe soe como empobrecimento:

Meu sonho, eu te perdi; tornei-me em homem.
Feito homem, homem entre homens, homem entre coisas, o poeta se dá conta de seus cinco sentidos alertas, que de resto nunca lhe faltaram, pois os eflúvios místicos – vá lá – de sua fase sublime sempre se mesclaram de inequívocos arrancos sensuais, sobretudo em O caminho para a distância, quando ele estava, quem sabe, menos consciente de sua aristocrática missão de... (ou de vate, à escolha).

Descendo ao concreto, o poeta faz as pazes com a vida. Caminha para assumir a sua naturalidade. Livra-se das penas de pavão e de águia que se tinha acrescentado. Já não é uma ave do paraíso. Não mais necessita de exacerbar, por vanglória de super-homem, as razões de sua angústia. Ao contrário, procura apaziguá-los. Descobre o chão em que pisa, encara o cotidiano e não se envergonha – a partir de Novos poemas – de falar como todo mundo, tão coloquial quanto... Manuel Bandeira (que de resto lhe fornece a epígrafe para aquele livro: "Todos os ritmos, sobretudo os inumeráveis"). A prosa já não é desdenhosa; não é contra, mas a favor; não se derrama em apóstrofes nem se despenha em cascatas espumejantes para inglês ver; nasce do encontro e não do conflito, da aliança e não do atrito. Poeta e cidadão se encontram, entendem-se, falam a mesma linha.

E a mulher se encarna. Ainda estará longe do padrão meio faceto e muito íntimo da famosa "Receita de mulher", mas já não é mais uma transfiguração perturbadora e etérea – espécie de fantasma inexistente de um castelo que também não existe. A mulher agora é gente, vai ser companheira e amiga:
Não, tu não és um sonho, és a existência
Tens carne, tens fadiga e tens pudor
No calmo peito teu.
O poeta reconhece os amigos: "Soneto a Otávio de Faria", "Saudade de Manuel Bandeira", "Balada de Pedro Nava", "Mensagem a Rubem Braga", "Máscara mortuária de Graciliano Ramos", "A última viagem de Jayme Ovalle". Volta-se para o tempo presente, esquece a poesia de timbre apocalíptico. Talvez já não pense na posteridade, e, por isso, quem sabe, começa a assegurá-la. Os poetas intelectuais franceses e os poetas metafísicos ingleses fazem parte de uma aventura espiritual encerrada. Pablo Neruda, sensual e social, e Garcia Lorca, valorizado pelo martírio, tornam-se familiares. Vinicius veste-se sob medida, põe-se à vontade dentro de um lirismo que, sobretudo a partir de Cinco elegias (1943), está mais solto, mais desenvolto. Os largos versos de largo fôlego despem a sua adjetiva púrpura da nobreza perfunctória – e duvidosa. O poeta multiplica os seus ritmos e persegue a sua substância, desvenda as próprias terras. Dispõe de um instrumento hábil e adestrado. Sua manipulação do verso é acrobática, com uma flexibilidade musical capaz de fazer misérias.

É a época das baladas. A "Balada do Mangue", cuja publicação na Revista do Brasil constitui um caso nacional. "Rosário", em que se viram reminiscências lorquianas ("La casada infiel"). A "Balada das meninas de bicicleta", a "das arquivistas", a da "Moça do mira-mar" e, mais tarde, a "das duas mocinhas de Botafogo": a mulher já não tem nada da idealização de musa incorpórea. Das pobres flores gonocócicas à amada, a mulher agora é de carne e osso. Mulher que trabalha, que anda de bicicleta, que habita em suma a cidade do real. E porque aí também habita, o poeta está impregnado de uma consciência social que o convoca para as preocupações de seu tempo. Tempo de guerra: "Balada dos mortos dos campos de concentração", "A bomba atômica", "A rosa de Hiroshima". De um certo desdém altivo, que não lhe era genuíno. Vinicius caminha assim para a compreensão e depois para a via larga e misericordiosa da absolvição geral:
Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres.
A matéria do poeta "a que foi dado se perder de amor pelo seu semelhante" é a vida – "e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdida e de sublime". Nada que é humano lhe é estranho. Uma sublimidade pejorativamente angélica cede lugar ao "sentimento da fecundidade da vida". A fórmula viniciana de viver intensamente guarda, contudo, ressaibos da antiga sede de absoluto, ou qualquer coisa parecida: a consciência do insatisfatório, a certeza de que tudo afinal é pouco. Mas o poeta é um bicho da terra e opera no horizonte de suas experiências, de seu comércio humano, sem as moedas falsas de que trazia cheias os bolsos no começo de um caminho que se pretendia para a distância, mas não foi.

Pouco importa o que se tenha, moralmente, ou metafisicamente, a dizer sobre a qualidade do espetáculo do mundo – Vinicius é um protagonista que não se esconde nos bastidores. Dá-se, empenha-se, age como age. Sua poética, como na vida, abre-se por isso cordial e fraterna. Sua casa é "grande e clara", as janelas abertas, abertas as portas: "Entrai, irmãos meus!". O sentimento da convivência, da comunhão, banha o poeta e o homem (e haverá distinção entre um e outro?), banha sua obra: "A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristecia também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da evocação, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.".

Tomado o partido do sentimento contra o ressentimento, o poeta afasta a solidão que se confunde com o orgulho e o menoscabo. Não mais para exaltar-se, mas para exaltar a vida, sente-se e faz-se intérprete e, se muito permitem, se desintelectualiza. E assim alarga o campo de sua comunicação com o grande público que lhe confere a palma palpável de sua glória.

Essa comunicação mais ampla, mais numerosa e até mais fácil pedirá a cooperação da música. A fusão sempre é viável nesse poeta do encontro. Poema e canção se casam, convivem amigável e respeitosamente na penumbra de uma boîte que o público entulha para ouvir, da mesma boca, o "Berimbau", e "O dia da criação". Eu vi e dou testemunho desse hálito fresco de poesia injetado de surpresa na frivolidade burguesa e na boêmia dissipação. O poeta parece ter encontrado aquela "música que seja como o ponto de reunião de muitas vozes". Romperam-se as últimas cadeias, a palavra se fez canto, o poema se fez canção. É a popularidade. O poeta é arauto e porta-voz. Por tudo a que a vida oferece ("É claro que a vida é boa") e por tudo o que à vida falta ("Acontece que eu sou triste"), pela dialética das razões e pela sem-razão da dialética,
Mais do que nunca é preciso cantar!
Na maturidade, o apaziguamento retoma os caminhos da infância – tempo em que tudo "era indizivelmente bom". Já não importa vir perigosamente, mas afetuosamente. O poeta convive e quer bem. Torna-se o maior cantor de sua cidade, com cuja alma se identifica. Para só falar das letras de músicas, deixando de lado os poemas, entre os quais todo um livro, ainda inédito, em louvor do Rio, sucedem-se as criações na linha da tradição popular, recriada à feição de uma sensibilidade impregnada do sal de seu tempo. Pela voz do poeta, cantam os que não têm voz. O próprio morro tem vez. Vinicius abandona a tentação de um refinamento a seu alcance e dissolve-se no sentimento geral. Assim como em versos de quem conhece os segundos da técnica mais apurada cabe uma receita de feijoada, assim também, no balanço e na cadência de um samba, cabe um hino de amor à vida. O poeta altíssimo está, finalmente, na boca das multidões. Agora, sim, olha o céu, mas sobretudo pisa a terra.

Já no O Caminho para a Distância, seu livro de estréia, Vinicius divulga seus primeiros sonetos. O primeiro deles, pela ordem de paginação, "Revolta", é, claramente, um auto-convite para abandonar o pranto, a solidão, o espaço e, deixando de ser água das alturas infinitas, vir habitar o mundo:
O mundo é bom. O espaço é muito triste...
É uma antecipação premonitória do itinerário que aqui procuramos rastrear. Já o segundo soneto do O Caminho chora copiosamente: o poeta é incompreendido, um perdido, um desesperado que se esforça em demonstrar-se que é impraticável conciliar a alegria de viver com a nobre missão de poeta. Dois versos logo no primeiro quarteto definem uma pretensa filosofia de cunho romântico, tão século XIX:
A vida é um sonho vão que a vida leva
Cheio de dores tristemente mansas.
A mesma temática reaparece no terceiro e último soneto do O Caminho – "Judeu-errante", que nada tem ainda da marca pessoal de Vinicius. Essa marca só vai aparecer, nítida e finalmente livre, em Novos poemas, que se abre com "Ária para assovio", incorporada à Antologia mais tarde selecionada pelo poeta. A seguir, "Amor nos três pavimentos" assinala a chegada de Vinicius ao mundo, ao chão de todo mundo. Fundem-se aí a linguagem do amor e a linguagem da infância. Amar é ser feliz, logo, ser criança. O poeta entre na posse de um instrumento literário capaz de lhe dar, de saída, o seu "Soneto de intimidade", a que se seguem – todos incluídos nos Novos poemas – o "Soneto à lua", "Soneto de agosto", o "Soneto de Katherine Mansfield", "Soneto de contrição", o "Soneto de devoção" e o "Soneto de inspiração".

Uma vez na posse de sua língua pessoal, Vinicius nunca mais deixará de compor os seus sonetos. Observa Paulo Mendes Campos, com razão, que "depois do modernismo, inimigo do soneto, foi Vinicius de Morais que começou a criar gosto pelo soneto de forma regular". Composição poética de 14 versos, com dois quartetos e dois tercetos, há mil maneiras de fazer um soneto, sem contar a estrambótica. O soneto está em todas as literaturas e, desde o século XIII, resiste a todas as revoluções. Não há a rigor grande poeta que não tenha sonetado – Dante, Petrarca, Shakespeare. Nas letras portuguesas, as duas mais altas vozes são de exímios sonetistas – Camões e Fernando Pessoa. O soneto é a bem dizer o cartão de identidade de um poeta. É preciso chamar-se, porém, Charles Baudelaire, ou equivalente, para manter-se na camisa de força de um soneto e de fato empreender, com disciplina e liberdade, obra pessoal, poeticamente válida.

No Brasil, depois da rigidez parnasiana, responsável por algumas peças marmóreas, mas perenes (Raimundo Correa, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira), a reação simbolista floresceu com sonetistas do porte de Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Sousa. O movimento modernista, para originar o provinciano e sufocante ambiente literário nacional, precisou saudavelmente mover campanha mortal contra o soneto. Como era de esperar os resultados foram positivos: o soneto não morreu, mas ressurgiu renovado e, nem por isso, menos popular. Os próprios Corifeus do modernismo – Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade – conquistaram o direito de cometer os seus sonetos sem renunciar à personalidade e à poesia.

Forma poética popular desde a sua origem, o soneto é, para o poeta, como diz Paulo Mendes Campos, "um desafio e uma brincadeira". Desafio sobretudo, quero crer, pelo convite a reformar uma fórmula esgotada e sempre inesgotável; brincadeira que, como todo ato lúdico, só dá prazer dentro de um número de regras, nessa inebriante conciliação da liberdade com a disciplina.

Vinicius é um que aceitou o desafio e saiu-se bem dele. Seu lugar, na volta ao soneto, se volta houve entre nós, está historicamente assegurado. Seus sonetos, longe de serem acadêmicos, isto é, frios, natimortos, são essencialmente modernos: respira a mesma naturalidade de suas melhores composições. A lição camoniana, que por sua vez será petrarquiana, amplia, nos sonetos vinicianos, esse espaço imponderável, mas nítido, da liberdade interior, sem a qual o soneto é apenas um exercício enfadonho e bem-pensante, tendente ao sublime, mas tão só conceituoso, o que quer dizer antipoético. O cilício do soneto, para usar a expressão feliz de Carlos Dante de Moraes, como todo recurso de ascese, há-de conduzir a mais liberdade, o que no caso é também mais personalidade, ou seja – originalidade.

É fácil entender, por tudo isso, como faltava à bibliografia de Vinicius de Moraes este Livro de sonetos. Aqui se juntam todos os de sua lavra que o poeta considera realizados, impregnados, pois, de sua marca pessoal. Vários deles já correm mundo e freqüentam obrigatoriamente as coletâneas do gênero. Conquistaram, com o favor do público, o direito à permanência. É o caso de "Soneto de fidelidade", cujos ecos – pelo menos os ecos – estão em oiças. Ou do "Soneto de separação", que, como aquele, atravessa, impávido, em decassílabos espontâneos, ainda que de sabor clássico – ou camoniano, o que dá na mesma – os escolhos de um tema eterno. Na mesma linha, eu poderia citar o "Soneto do amor total". Metro e rima variam, porém, segundo as exigências do tema, ou segundo os caprichos do poeta, que é, no soneto ou fora dele, um malabarista que não recua diante do salto mortal. Aí está, entre tantos, "A pera", que não deixa mentir.

Desafiando e brincando, ao longe de 35 anos de fidelidade à poesia, Vinicius construiu este Livro de sonetos, do qual se poderá dizer, sem querer bancar o profeta, que o público já consagrou, com o que dá provas de bom-gosto e discernimento. De todas as formas poéticas, fora a quadrinha em redondilhas, o soneto é por certo a mais popular, inclusive – ou sobretudo – porque de mais fácil memorização. A unidade da peça e até o galope dos versos, quase sempre heróicos, assim como a distribuição geométrica e visual – quartetos e tercetos, são bons arrimos para a memória, que aliás, em matéria de sonetos, é ajudada pelo seu melhor servo, que é o coração. Saber de cor, no caso, é mesmo saber de coração. Também quanto a esse aspecto da acolhida popular, é fora de dúvida que Vinicius, com os seus sonetos, várias vezes acerta na mosca.

A Editora Sabiá, agindo sabiamente, ao publicar este Livro de sonetos, não fez mais do que obedecer a uma misteriosa lei natural – e é que os sonetos, como certas aves, estimam andar em bando, juntos, para juntos enfrentarem os riscos de serem abatidos, quero dizer: de serem lidos, amados e decorados.

Oswaldo França Júnior - Eu não conhecí

EU NÃO CONHECI

Meu filho foi embora e eu não o conheci. Acostumei-me com ele em casa e me esqueci de conhecê-lo. Agora que sua ausência me pesa, é que vejo como era necessário tê-lo conhecido.

Lembro-me dele. Lembro-me bem em poucas ocasiões. Um dia, na sala, ele me puxou a barra do paletó e me fez examinar seu pequeno dedo machucado. Foi um exame rápido. Uma outra vez me pediu que lhe consertasse um brinquedo velho. Eu estava com pressa e não consertei. Mas lhe comprei um brinquedo novo. Na noite seguinte, quando entrei em casa, ele estava deitado no tapete, dormindo e abraçado ao brinquedo velho. O novo estava a um canto.

Eu tinha um filho e agora não o tenho mais porque ele foi embora. E este meu filho, uma noite, me chamou e disse: “Fica comigo. Só um pouquinho, pai.” Eu não podia; mas a babá ficou com ele.

Sou um homem muito ocupado. Mas meu filho foi embora. Foi embora e eu não o conheci.

Olavo Romano - Guardião da Chama

GUARDIÃO DA CHAMA
“É da água, é do fogo; é do princípio do mundo” - (Toninho Silvério, Mestre Ferreiro)

Pelas bandas do Araxá, quem procura ferramenta de corte de não dar dor de cabeça nem deixar freguês na mão, ferragem pra carro de boi ou carrinho de carneiro, candeia do mais fino gosto e feitio, não carece perder tempo batendo perna à toa. Qualquer menino sabe que na cidade só existe um ferreiro formado: Antônio Silvério Alves, o afamado Seu Antônio.

Mesmo saindo de lá, ninguém na região escapa da família, cujo nome é grande e anda longe. A têmpera corre nas veias, no sangue rubro de fogo e ferro. Do avô materno, José Mota Dias, lá no Carmo, que é do Paranaíba, passou para o neto Joaquim Silvério Filho, do Ibiá. Na oficina do irmão, Seu Antonio Silvério enfrentou malho e bigorna dos dezessete aos trinta e quatro anos. E saiu “ferreiro formado”.

Chegou em Araxá, “sem um tostão de indenização e sem oficina própria”. Mas não tinha as mãos vazias. Trazia nelas, como uma jóia, seu bem mais precioso, dom que o acompanha dia e noite desde o nascimento: o domínio do fogo, da água e do ar, que lhe permite a mestria de esculpir o ferro com força, paciência e habilidade.

Na primeira oficina, do acanhado tamanho que os cobres permitiam, deixava seu suor cotidiano, fiel oferenda ao fogo que nunca pode se apagar. O sustento, mesmo, vinha do DER, onde malhou por mais de vinte anos. Sua atual oficina, quarenta anos no mesmo endereço, é bem mais ampla e ganhou espaço para o luxo da serralheria artística. De sua forja toda hora está saindo foice e marcador de gado. Mas nosso mestre-ferreiro sabe (e pode) muito mais.

Em sua lida, longa e contínua, foi forjando as ferramentas (compassos e esquadros pra exatidões; tenazes, talhadeiras, martelos e marretas de diversos pesos...), com as quais fabrica todas as outras. São ferramentas-matrizes, geradoras de incontáveis foices, facões, enxadas e enxadões que cantam e tinem pelas roças e campos da redondeza. Roçam mato, limpam pasto, fazem cova caprichada onde deitam, com carinho, abençoada semente. Capinam toda a lavoura que, prosperando viçosa, promete boa colheita.

Então, o carro-de-bois ou carrinho-de-carneiros, atopetado e gemente, ferrado de aro e cravo, enche tulhas e paióis feitos por bons carapinas que derrubaram madeira e a poder de competência no manejo do machado, da serra e da enxó, formão, talhadeira e plaina, assentaram dobradiça e fechadura, criaram abrigo seguro em que o homem deposita com gratidão e louvor o sustento da família.

No aconchego da casa, há facas bem afiadas para qualquer serventia. Os homens, moços ou velhos, não dispensam canivete para descascar uma fruta, picar um fumo famoso, alisar sedosa palha, cortar couro ou madeira, até um caco de cuia para arte ou brincadeira, diversão da criançada. Na cozinha, a colher de ferro amassa o feijão tenro e gostoso que cheira por toda a casa, anunciando aos currais a hora do de-comer.

O ofício é como tocha, passada de mão em mão. Por isso, “Toninho” Silvério faz profissão de fé: “coloquei no meu filho o nome Antonio Silvério Neto e, se Deus quiser, nós vamos continuar a tradição da família”. É só aproveitar – com o compromisso de honra – a marca “AS”. É assinatura que firma, a ferro e fogo, em cada peça, a merecida fama deste último ferreiro em atividade na região. O herdeiro, entretanto, só domina, até agora, parte do ofício. “No tempo certo de aprender as têmperas, o menino preferia ficar andando de bicicleta”. Por isso, nos rigores da tradição, o pai não o considera um “ferreiro formado”.

Mas ele é, sem sombra de dúvida, artista serralheiro de categoria.

Fiel a sua missão, Mestre Antônio Silvério conduz, no seu altar-oficina, secreto ritual de iniciação e permanência. A cerimônia se inicia pelo fogo da forja, alimentado de madeira e ar. O velho fole, porém, não sopra mais. Aposentado pela eletricidade, filha mais nova da água, é como pulmão inerte que parou de respirar.

O ferro, nascido de terra e fogo, está à vontade em casa. Seguro por tenaz, que também é ferro puro, recebe calor até o mais completo rubor. Malhado, marretado, forjado, é, afinal, moldado, em idas e vindas da bigorna ao fogo, do fogo à bigorna, até ganhar, enfim, forma e feição.

Houve época, no começo dos tempos, em que os instrumentos do culto - malho, marreta, tenaz e bigorna - só existiam no sonho e no desejo do Criador. Trazidas ao mundo dos mortais por obra, arte e graça do Ferreiro-Mestre, viraram matrizes de numerosa e variada família. Ferramenta, para ganhar corte dos bons, pede uso de esmeril. Agora, têmpera, para todos os casos, é sempre a poder do choque de fogo e água.

Na ferraria, tudo tem o calor da beleza: o movimento do fogo, línguas vivas lançando chispas, o atento olhar do ferreiro, gestos precisos alternando força e arte, no transitório rubor em que o metal se deixa moldar. Se é cravo para ferrar carro-de-boi, o forjar é um bailado. Frente à peça, o mestre e seu ajudante levantam os malhos bem altos, reverentemente preparados. Então, batem e levantam alternadamente seus grandes martelos, em cadência de precisa coreografia.

Finalmente, na seqüência da última batida, o mestre bate o malho na bigorna, enquanto o outro pára seu malho no ar. Quem reparar com atenção o arredondado do cravo, tão perfeitamente uniforme, talvez possa perceber, por trás da contida forma, o pulsar de secreta harmonia – imagem só a poucos revelada de pausas e sustenidos que os ferreiros-bailarinos, no bate-e-levanta dos braços, no gingado de seus corpos arrodeando a bigorna, moldaram em metal bruto.

Nesses tempos em que os excluídos se organizam e vão às ruas portando cartazes e reivindicando ruidosamente seus direitos, Seu Antônio, quase 60 anos de prática nas costas, está lá no seu canto, calado e quieto. Mas já foi um pouco de tudo. Antes dos quarenta, fichado como um serviçal qualquer, um “sem profissão” e, também, “sem oficina”.

Antes dos oitenta, um injustiçado, um “sem reconhecimento”, que só pôde expressar mínima parte de sua capacidade de trabalho. O gradativo sumiço da freguesia, cada vez mais rara nos últimos 20 anos, deixou-lhe na boca um travo de amargura e solidão. Mestre Antônio Silvério faz parte do grupo dos que, no dizer de reconhecido especialista, se entregando a determinado ofício por gosto ou vocação, vivem insatisfeitos e acabam profissionalmente desajustados.

Assim, não só ele como Dona Vani, sua esposa, e seu filho Toninho são credores da estima e do carinho da comunidade. A primeira parcela para a quitação desta dívida social e afetiva é o resgate que ora se faz da Ferraria, atendendo rigorosamente suas orientações. É uma justa e merecida homenagem, com a qual se reconhece publicamente o valor deste nosso último (e único) Ferreiro Mestre. Deste valoroso guardião da Ferraria, a cujo poder se curvam docilmente o fogo, a água, o ar e a madeira. Juntos, em harmônica cooperação, eles imortalizam, na têmpera do ferro, a incomparável marca dessa rara figura de homem e profissional que é Mestre Antônio Silvério, o afamado “AS” que agora vive também no grato e reconhecido coração de nossa gente.