quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Olavo Romano - Guardião da Chama

GUARDIÃO DA CHAMA
“É da água, é do fogo; é do princípio do mundo” - (Toninho Silvério, Mestre Ferreiro)

Pelas bandas do Araxá, quem procura ferramenta de corte de não dar dor de cabeça nem deixar freguês na mão, ferragem pra carro de boi ou carrinho de carneiro, candeia do mais fino gosto e feitio, não carece perder tempo batendo perna à toa. Qualquer menino sabe que na cidade só existe um ferreiro formado: Antônio Silvério Alves, o afamado Seu Antônio.

Mesmo saindo de lá, ninguém na região escapa da família, cujo nome é grande e anda longe. A têmpera corre nas veias, no sangue rubro de fogo e ferro. Do avô materno, José Mota Dias, lá no Carmo, que é do Paranaíba, passou para o neto Joaquim Silvério Filho, do Ibiá. Na oficina do irmão, Seu Antonio Silvério enfrentou malho e bigorna dos dezessete aos trinta e quatro anos. E saiu “ferreiro formado”.

Chegou em Araxá, “sem um tostão de indenização e sem oficina própria”. Mas não tinha as mãos vazias. Trazia nelas, como uma jóia, seu bem mais precioso, dom que o acompanha dia e noite desde o nascimento: o domínio do fogo, da água e do ar, que lhe permite a mestria de esculpir o ferro com força, paciência e habilidade.

Na primeira oficina, do acanhado tamanho que os cobres permitiam, deixava seu suor cotidiano, fiel oferenda ao fogo que nunca pode se apagar. O sustento, mesmo, vinha do DER, onde malhou por mais de vinte anos. Sua atual oficina, quarenta anos no mesmo endereço, é bem mais ampla e ganhou espaço para o luxo da serralheria artística. De sua forja toda hora está saindo foice e marcador de gado. Mas nosso mestre-ferreiro sabe (e pode) muito mais.

Em sua lida, longa e contínua, foi forjando as ferramentas (compassos e esquadros pra exatidões; tenazes, talhadeiras, martelos e marretas de diversos pesos...), com as quais fabrica todas as outras. São ferramentas-matrizes, geradoras de incontáveis foices, facões, enxadas e enxadões que cantam e tinem pelas roças e campos da redondeza. Roçam mato, limpam pasto, fazem cova caprichada onde deitam, com carinho, abençoada semente. Capinam toda a lavoura que, prosperando viçosa, promete boa colheita.

Então, o carro-de-bois ou carrinho-de-carneiros, atopetado e gemente, ferrado de aro e cravo, enche tulhas e paióis feitos por bons carapinas que derrubaram madeira e a poder de competência no manejo do machado, da serra e da enxó, formão, talhadeira e plaina, assentaram dobradiça e fechadura, criaram abrigo seguro em que o homem deposita com gratidão e louvor o sustento da família.

No aconchego da casa, há facas bem afiadas para qualquer serventia. Os homens, moços ou velhos, não dispensam canivete para descascar uma fruta, picar um fumo famoso, alisar sedosa palha, cortar couro ou madeira, até um caco de cuia para arte ou brincadeira, diversão da criançada. Na cozinha, a colher de ferro amassa o feijão tenro e gostoso que cheira por toda a casa, anunciando aos currais a hora do de-comer.

O ofício é como tocha, passada de mão em mão. Por isso, “Toninho” Silvério faz profissão de fé: “coloquei no meu filho o nome Antonio Silvério Neto e, se Deus quiser, nós vamos continuar a tradição da família”. É só aproveitar – com o compromisso de honra – a marca “AS”. É assinatura que firma, a ferro e fogo, em cada peça, a merecida fama deste último ferreiro em atividade na região. O herdeiro, entretanto, só domina, até agora, parte do ofício. “No tempo certo de aprender as têmperas, o menino preferia ficar andando de bicicleta”. Por isso, nos rigores da tradição, o pai não o considera um “ferreiro formado”.

Mas ele é, sem sombra de dúvida, artista serralheiro de categoria.

Fiel a sua missão, Mestre Antônio Silvério conduz, no seu altar-oficina, secreto ritual de iniciação e permanência. A cerimônia se inicia pelo fogo da forja, alimentado de madeira e ar. O velho fole, porém, não sopra mais. Aposentado pela eletricidade, filha mais nova da água, é como pulmão inerte que parou de respirar.

O ferro, nascido de terra e fogo, está à vontade em casa. Seguro por tenaz, que também é ferro puro, recebe calor até o mais completo rubor. Malhado, marretado, forjado, é, afinal, moldado, em idas e vindas da bigorna ao fogo, do fogo à bigorna, até ganhar, enfim, forma e feição.

Houve época, no começo dos tempos, em que os instrumentos do culto - malho, marreta, tenaz e bigorna - só existiam no sonho e no desejo do Criador. Trazidas ao mundo dos mortais por obra, arte e graça do Ferreiro-Mestre, viraram matrizes de numerosa e variada família. Ferramenta, para ganhar corte dos bons, pede uso de esmeril. Agora, têmpera, para todos os casos, é sempre a poder do choque de fogo e água.

Na ferraria, tudo tem o calor da beleza: o movimento do fogo, línguas vivas lançando chispas, o atento olhar do ferreiro, gestos precisos alternando força e arte, no transitório rubor em que o metal se deixa moldar. Se é cravo para ferrar carro-de-boi, o forjar é um bailado. Frente à peça, o mestre e seu ajudante levantam os malhos bem altos, reverentemente preparados. Então, batem e levantam alternadamente seus grandes martelos, em cadência de precisa coreografia.

Finalmente, na seqüência da última batida, o mestre bate o malho na bigorna, enquanto o outro pára seu malho no ar. Quem reparar com atenção o arredondado do cravo, tão perfeitamente uniforme, talvez possa perceber, por trás da contida forma, o pulsar de secreta harmonia – imagem só a poucos revelada de pausas e sustenidos que os ferreiros-bailarinos, no bate-e-levanta dos braços, no gingado de seus corpos arrodeando a bigorna, moldaram em metal bruto.

Nesses tempos em que os excluídos se organizam e vão às ruas portando cartazes e reivindicando ruidosamente seus direitos, Seu Antônio, quase 60 anos de prática nas costas, está lá no seu canto, calado e quieto. Mas já foi um pouco de tudo. Antes dos quarenta, fichado como um serviçal qualquer, um “sem profissão” e, também, “sem oficina”.

Antes dos oitenta, um injustiçado, um “sem reconhecimento”, que só pôde expressar mínima parte de sua capacidade de trabalho. O gradativo sumiço da freguesia, cada vez mais rara nos últimos 20 anos, deixou-lhe na boca um travo de amargura e solidão. Mestre Antônio Silvério faz parte do grupo dos que, no dizer de reconhecido especialista, se entregando a determinado ofício por gosto ou vocação, vivem insatisfeitos e acabam profissionalmente desajustados.

Assim, não só ele como Dona Vani, sua esposa, e seu filho Toninho são credores da estima e do carinho da comunidade. A primeira parcela para a quitação desta dívida social e afetiva é o resgate que ora se faz da Ferraria, atendendo rigorosamente suas orientações. É uma justa e merecida homenagem, com a qual se reconhece publicamente o valor deste nosso último (e único) Ferreiro Mestre. Deste valoroso guardião da Ferraria, a cujo poder se curvam docilmente o fogo, a água, o ar e a madeira. Juntos, em harmônica cooperação, eles imortalizam, na têmpera do ferro, a incomparável marca dessa rara figura de homem e profissional que é Mestre Antônio Silvério, o afamado “AS” que agora vive também no grato e reconhecido coração de nossa gente.

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