sábado, 28 de janeiro de 2012

Bartolomeu Queirós - Entrevista (transcrição)

(Seleção de Octávio Elísio)

Meu nome é Bartolomeu


Hoje em qualquer lugar que eu vou e eu vejo “profissão” eu escrevo escritor. Eu nasci em Papagaio, uma cidade pequenininha no interior de Minas, numa região em que todas as cidades começam com “p”, Papagaio, (?), (?), (?). Todas as cidades da região começam com “p”. Eu nasci nessa cidade e fui educado lá nos primeiros anos de escola e sempre passei por fora da escola. Quando eu entrei para a escola eu já sabia ler, já sabia escrever. O primeiro alfabeto que eu aprendi foi o musical. Porque quando eu era muito pequeno minha mãe me deu um violino de presente e eu tinha aula de música e aprendi a escrever a escala musical, eu faço a escola musical antes de ler, eu já sabia escrever música.

Depois eu larguei o violino, me dava muita gastura passar aquele arco nas cordas, me arrepiava o corpo um pouco, então lá em casa tinha uma contradição muito grande. Minha mãe queria que eu fosse músico e meu pai queria que eu fosse caminhoneiro. No dia em que eu queria agradar meu pai eu não tocava violino e o dia em que eu queria agradar minha mãe eu era caminhoneiro.

Eu aprendi desde cedo a mobilidade de viver com aquelas duas coisas. Minha mãe apaixonada pela música e meu pai apaixonado por manteiga. Ele levava manteiga para o Rio de Janeiro. Então eu tinha essa dúvida em ser caminhoneiro ou em ser músico. Acabei não sendo coisa nenhuma.

Aprendi a ler com o meu avô, sempre conto isso. Meu avô escrevia nas paredes da casa, eu tinha uma casa muito grande. Ele escrevia tudo o que acontecia na cidade nas paredes. Quem morreu, quem casou, quem viajou, quem matou, quem traiu, tudo ele escrevia e eu ficava perguntando: “que palavra é essa?”, “que palavra é aquela?”, então de repente eu sabia ler. Quando eu entrei para a escola, até hoje eu brinco muito, eu tinha tanta necessidade de ser amado que eu fazia de conta que não sabia ler nem escrever e aprendia tudo de novo para a professora gostar de mim.

A Dolores Cony Campos me adorava, porque eu aprendia com uma facilidade... Não eu não estava aprendendo nada, eu já sabia, mas ela ficava feliz então eu brinco hoje que quando a gente é menino não aprende para passar no vestibular, não aprende para nada disso, a gente só aprende para ser amado pelo professor, porque o professor é aquele que sabe. A gente entra para a escola e o professor sabe, ele vai ensinar: então eu quero ser amado. Acho que a gente só aprende por esse caminho.

Aí, eu entro para a escola e tenho uma infância normal de cidade do interior, de brincar, de correr, de nadar no rio, de subir em árvore, era coisa que criança faziam. Tive uma mãe extremamente criativa, ela morreu muito cedo, com 33 anos, eu estava com 7 anos quando ela morreu.

Mas minha mãe era assim. Lá em casa tinha só doce de leite. Leite. A nata, meu pai mexendo com a manteiga. No dia do aniversário da gente, só tinha doce de leite e minha mãe fazia o doce de leite colorido com anilina: era redondo, quadrado, azul, amarelo, enfeitava a mesa... tudo tinha o mesmo gosto. Ela fazia essas coisas.

Minha mãe, sobrava anilina do doce, ela botava na água e tingia as galinhas de amarelo, de azul, de verde e a gente brincava com isso. Eu tinha uma mãe que engrenava o jogo, eu até conto isso no livro. Quando não tinha carne, minha mãe fritava um ovo, fazia um chuchu bem verdinho, ensinava a gente a furar o ovo e misturar a gema no arroz e o ficar amarelo e o prato era um prato esmaltado de azul e a gente fazia a bandeira nacional. O amarelo, com o chuchu verde era a mata e ela dizia “agora vamos comer o ouro”. Não tinha carne e minha mãe era uma pessoa muito inventiva, eu aprendi muito com ela.

E guardo também dela essa coisa, minha mãe morreu de câncer. Um câncer muito complicado, porque naquela época não tinha tratamento, não tinha nada. Então minha mãe sofreu muito para morrer, e era ela muito jovem. E quando a dor era demais, demais, demais ela sentava na cama e cantava. Ela cantava muitas músicas de Carlos Gomes. Ela cantava, ela tinha uma voz linda e a voz atravessava a casa inteira, o quintal inteiro, então a gente sabia que a dor era demais. Mas eu também acho que na minha obra literária ficou muito da minha mãe. Quando a dor é demais eu escrevo, eu faço poesia, eu canto. É uma coisa que é um ranço da minha mãe, que ficou no meu trabalho até hoje.

Eu tive uma infância desse jeito. Meu pai depois se casa pela segunda vez e nós somos distribuídos. Nós éramos seis irmãos, minha madrasta não queria ficar conosco, ela queria constituir a família dela, então nos fomos distribuímos entre tios, parentes e cada um vai para um lado. A gente só se encontra mais tarde, depois de adultos é que a gente volta a conviver um irmão com outro. Minha infância foi isso.

Eu acho também que a gente nasce com um potencial na vida, potencial de culpas, de carícias, que são muito violentas. Hoje eu brinco e as pessoas se espantam muito quando e eu digo isso – falo reservadamente para os meus amigos – que a melhor coisa que minha mãe fez foi ter morrido quando eu tinha sete anos. Porque eu aprendi tanto com a vida, tive que me adaptar tanto às circunstâncias, que se ela tivesse aí eu talvez estivesse agarrado na barra da saia dela. Eu tive que tomar conta de mim mesmo muito cedo, me adaptar a situações diversas, me conter, então foi isso que eu herdei dela, essa capacidade adaptar, de tudo achar fácil fazer, não ficou complicado. Eu sempre digo isso, que o maior projeto dela foi esse para mim.

Meu pai casa, nós somos distribuídos. Eram só dois homens e quatro mulheres e nós só fomos nos reencontrar mais tarde. Se bem que eu tive muita proximidade com meu irmão, nós éramos dois homens e ele era o mais velho, eu era o quarto. Ele sempre tomou muita conta de mim. A gente ficou muito amigo durante muito tempo. Agora ele já morreu também. Hoje nós somos três vivos e três mortos. Então eu começo por aí. Minha infância por aí. Foi sempre uma infância cheia de adaptações novas, de situações novas, de fazer tudo direitinho para eles gostarem de mim, você me entendeu?

Então, teve uma época, mas aí devia ter um sentimento de culpa fantástico... Quando eu era menino, eu era muito adiantado na escola, e eles falaram que eu era muito bonitinho, então, o padre achava que eu deveria aprender a ajudar a missa. Eu lembro disso, eu nunca aproveitei, mas ainda quero aproveitar. O padre me convidou para ajudar na missa para dar exemplo para os outros meninos porque eu era muito adiantado na escola, eu era muito bonitinho, eu tinha que ajudar a missa. Então eu falei pra ele, “eu só ajudo na missa se o senhor consagrar uma hóstia para mim do tamanho da sua”. E ele topou a parada, então, na hora da comunhão eu tive que partir aquela hóstia, colocar na boca. Que era do tamanho da dele. Então, eu não me contentava com o Cristo menor, tinha que ser igual à dele. Quer dizer, uma culpa que a gente carregava dessa vida contraditória. Mas eu acho tudo enriquecedor na infância, mas foi bom.

Daí quando eu terminei o curso primário eu fui para Divinópolis. Eu fui estudar em um colégio interno, fui fazer um ano de admissão e quatro anos de curso ginasial, naquele tempo. Era um colégio de franceses, mas eram leigos. Então, eu fiquei nesse colégio por cinco anos. E era uma escola muito sólida, muito pesada. Eu lembro que no ginasial eu estudava português, francês, latim, inglês e espanhol. Eram cinco línguas. Isso no ano que se chama hoje quarta série. E a gente dava conta de lidar com isso muito bem. Era uma escola pesada. A gente tinha um convento que era de franciscanos, que era perto do colégio. E a gente tinha uma sessão de cinema toda sexta-feira, um cinecuble. Os frades franciscanos iam para lá para assistir os filmes com a gente. Esse D. Cláudio assistia muito cinema. E ele franciscano lá, e a gente, se encontrava na sessão de noite na sexta-feira. Ele fazia seminário, não era ainda franciscano. Era um colégio que cuidava muito dessa outra parte, da cultura geral da gente.

A gente tinha muito concerto, turma de piano no colégio. Tinham exposições, o cineclube... Então, era um colégio que cuidava bem da gente. Depois que eu terminei o curso ginasial em Divinópolis eu fui para Juiz de Fora, para o Convento dos Dominicanos e lá eu fiquei estudando, depois eu abandonei. E aí, eu vim para Belo Horizonte. Voltei para Belo Horizonte. E aí eu fui fazer educação pré-escolar, na ADAP, chefiado pela D. Nazira. E aí, eu fiz educação pré-escolar e fui convidado para ser professor na ADAP. Aí, eu ganhei uma bolsa. Vou para a França e fico no Instituto Pedagógico Nacional de Paris, 1967 a 1969, estudando. E depois, eu volto para o Brasil e continuo trabalhando no Ministério da Educação, nessa escola de demonstração, que a gente era pago pelo Ministério da Educação só para fazer experiências pedagógicas. Era uma escola que não tinha currículo, a gente fazia o que a gente inventava.

Aí, eu faço Filosofia na Universidade Federal e fico por aí nessa vida. Continuo na ADAP, sempre trabalhando com educação, era um grupo muito bom, nós éramos orientados pelo Eduardo Lobo, que era o chefe da gente. Naquele tempo, o doutor Eduardo Lobo era muito amigo do Anísio Teixeira, então a gente tinha proximidade com Anísio Teixeira. Tinha Helena Antipoff... E eu fui muito ligado a d. Helena. E toda vida eu acreditei muito na arte como uma via de sensibilização diante do mundo.

Aí, eu comecei a trabalhar com arte-educação na ADAP, mas com crianças do pré-escolar, só. Aí, depois, como dava um resultado muito bom, a gente resolveu estender o trabalho para o primeiro grau e fiquei chefiando durante o tempo todo. Várias pessoas que trabalhavam comigo eram da área de arte, de teatro, da área de música, de ciências. Passo a ser mais um centralizador de trabalho. As pessoas queriam fazer um trabalho mais criativo em geografia, em história, em língua portuguesa, sempre me procuravam, era um apoio de toda a estrutura da escola. Então, não vou dizer que tinha uma hora de educação artística. Era uma escola extremamente criadora em todos os momentos. Eu tinha muito esse espírito de arte.

Eu recebi um apoio muito grande desse pessoal da arte, da Helena Antipoff que entusiasmou o Augusto Rodrigues a fazer a Escolinha de Artes do Brasil. Ela que deu maior apoio no início, junto do Anísio Teixeira. Então, eu vou me envolvendo com esse tipo de trabalho e vou vendo, me ligando a pessoas que eram mais generalistas. O dr. (?) Renaut o que ele era? Ele era um generalista de educação. Ele sabia o que era educação. Ele não era professor de matemática, ele não era professor de português, não era professor de história, não era professora de nada: ele sabia o que era educação.

A d.Helena Antipoff a mesma coisa: ela era generalista. Aquela mulher que entendia de todas as coisas, além de ser uma grande psicóloga. Ela já tinha um mergulho profundo na alma humana, foi ela, inclusive, que trouxe (?) para Minas Gerais, para trabalhar aqui nos anos 40. E o Anísio Teixeira, um grande generalista. Eu estava cercado por esse tipo de pessoa. Hoje a gente nem vê mais esse tipo de pessoa. As pessoas, hoje, são todas especialistas, sabem sempre um pedacinho de cada coisa. Mudou tudo, inclusive o clínico geral que nem existe mais. Agora cada um faz um pedacinho. Um olha a garganta, outro olha o olho; esse conserta a sua unha; esse conserta seu cabelo; eles não dão conta de emendar a pessoa inteira, não dão conta.

Dessa época em que eu estudava Filosofia, eu tive um contato com a teoria do Marleau Ponty, que dá a grande sacada da educação contemporânea quando começa a trabalhar com os sentidos na fenomenologia da percepção. E ele fica muito tempo olhando para o sol e ele descobre que o olhar toca. Aí, ele dá o grande saque. O ouvido também é tático, quando você ouve uma boa música você arrepia o corpo inteiro. O gosto tem memória, que o homem é inteiro. Ele dá um grande saque da filosofia quando ele descobre que o homem não é dividido em sentidos, um sentido leva a outro, um sentido está contido em outro.

Ele fala belamente que o primeiro objeto de leitura é o olhar do professor, porque tem pessoas que nos olham e nos afastam. E tem pessoas quando nos olham, que nos acariciam. Então, ele começa a leitura. Então, a escola para mim tem esse rompimento que vem da Filosofia, não vem da Pedagogia – eu vou mais por esse campo. Que tudo passa pelos sentidos mas os sentidos não são divididos. O olhar dói, ouvir dói, tato dói. Tem pessoas que quando te tocam você sente carinho, tem pessoa que te toca e você sente amizade. Que é o homem? Essa coisa complexa! E vem até o Kant para dizer: se a gente soubesse quem era o outro a gente não precisava de escola, a gente só tem escola é porque a gente não sabe quem é o outro e precisa ajudar a vir à tona. O grande projeto da educação é aquele professor que assusta com a luz que vem do outro; um outro que ele não conhecia. É esse o professor que ensina. Não é esse que planeja e que tem que saber isso, isso e isso, mas aquele que não sabe quem é o outro e cria uma circunstância do sujeito vir à tona. Ele se encanta com esse sujeito que vem à tona, a educação passa por aí.

Então, eu começo esse trabalho e vou por aí, de arte-educação e arte, que toda a vida eu tive, fui sensível e acredito plenamente nela. E hoje, me dá uma inquietação, porque todos os movimentos hoje, para recuperação de jovens no Brasil hoje, todos eles, todas essas ONGs que cuidam de adolescentes e de crianças lançam mão da arte. Por que a escola não lança mão da arte antes, para não chegar aonde chegou? Todos os trabalhos das ONGs são em torno da arte! É teatro, cinema, música, bateria, dança, é tudo isso que se faz. Lança mão disso, porque sabe que a arte só existe quando o sujeito faz o melhor de si.

Então, se você convida o sujeito para dançar, ele quer dançar o melhor que ele pode; se você convida para desenhar, ele quer desenhar o melhor que pode; se você convida para escrever, ele quer escrever o melhor que pode. Então, hoje, as ONGs lançam mão de tudo isso da arte e a escola continua fechada a esse tipo de movimento. A escola deixa para o sujeito ser educado depois. Criança fica lá mas ela vai ter que se educar depois. Ela não dá conta de consumir essa confiança. Você não tem uma pedagogia ligada ao trabalho com a palavra – meu objeto de trabalho é a palavra. A palavra pedagogo, que hoje a pedagogia usa como aquele que conduz a criança à escola, e tal, no grego arcaico não é isso. No grego da origem, pedagogo significa parteira, aquele que ajuda o outro a vir à luz. O exercício do pedagogo é esse, ajudar o outro vir à luz. Mas eles não têm muito compromisso com a palavra. Você vê escola às vezes, assim, sem vontade de fazer muita coisa.

Eu vejo hoje... A situação brasileira é complicada na educação. Primeiro, porque ela quer ensinar aquilo que o menino não tem desejo. Agora, eu acho que a situação brasileira, hoje, ela tem, para mim, o caráter seguinte: primeiro, que, pelas notícias que a gente tem de televisão, de jornais, professor é um sujeito que quando quer ganhar um pouquinho mais tem que fazer greve, ir pra rua, tem que brigar, professor não tem nada, e tudo. Professor não é mais objeto de desejo do aluno. Nenhum aluno está querendo ser professor. E numa sociedade de consumo, por que eu vou querer ser esse cara aí? Ele não tem uma BMW, não viaja para a Europa, não aparece no Globo. O que eu quero?

Então, o professor não é objeto de desejo do aluno. O professor que ganha o que ganha para agüentar 50 minutos... Aqueles alunos também não são objetos de desejo. Então, há uma contradição aí, que não se resolve facilmente. Então, eu vejo o mundo extremamente precário, hoje. Estou vendo esses dias, o movimento em Roma em torno da morte do Papa, eu não vejo com religiosidade. Eu vejo como a necessidade do povo de ter uma liderança, de ter líder. Porque, o governo serve? O governo não me dá segurança, não me dá saúde, não me dá segurança. Eu, sirvo ao governo apenas para pagar impostos. Então, quando morre o Papa, que sempre me desejou a paz, que sempre me acolheu, ele está ali por uma declaração ao mundo de que falta liderança. Muito mais isso, que eu vejo nessa situação. É complicada a situação, para mim, hoje, nessas coisas, eu fico vendo essas contradições.

E aí, me torno um arte-educador. Mas sou de uma arte-educação no Brasil, que é do momento do Augusto Rodrigues, Noêmia Varela, que toda vida foi uma pedagoga comprometida com a subversão. Então, uma pedagogia maravilhosa, uma pedagogia do incômodo, uma pedagogia incomodada que não tem receita, que não tem nada. Que só tem procura, que você tem que ter nas coisas. Todo mundo que tem certeza, a única coisa que fica é fanático. Toda pessoa que encontra a verdade, ela tem essa incapacidade de ouvir, ela só fala. Então, a escola encontrou a pedagogia da verdade, só ela que fala. Ela tem a certeza da verdade, ela não faz uma pedagogia da dúvida, como d. Noêmia Varela fazia.

E eu também, porque desde a infância eu brinco muito com isso. Eu nasci e fui criado por via de dúvidas. Eu adoecia e minha mãe chamava um médico por via de dúvida, mas por via de dúvida ela me dava um chá e por via de dúvida ela acendia uma vela e por via de dúvida ela mandava benzer, então, quando eu ficava curado, ficava curado por via de dúvidas.

Eu tive uma vida de dúvidas. Eu sempre tive uma paixão pela dúvida. E eu peguei a metáfora como uma maneira de dúvida. A metáfora na literatura... A metáfora, mais do que uma figura de linguagem, é uma ação democrática. É quando você constrói um objeto e você dá entrada para todo mundo: cada um entra com o que pode, cada um faz o que pode. É uma coisa que é bonita na literatura, que é do Foucault isso, que, o que o sujeito lê não é o que eu escrevo, mas é o silêncio que eu deixo entre as palavras. A metáfora é isso. É aí que a arte entra, na metáfora que existe em qualquer obra de arte. Ela não é só uma figura literária, é uma figura da arte.

Você acolhe todo mundo com o que cada um tem. Não determina como ela quer ser vista, não determina como ela quer ser lida, não determina como ela quer ser escutada, simplesmente cria um espaço. Essas coisas sempre me apaixonaram muito, esse lado da arte. E essa arte, pra mim, que é muito bonita... Porque na Filosofia, eu aprendi também que o homem é um ser de relações. Eu preciso do outro para ser livre, eu preciso do outro para ser amado, eu preciso do outro para ser odiado, eu preciso do outro para me sentir entristecido. O outro é que me dá isso.

Depois, vem até o Lacan, e faz muito bem essa coisa, porque ele define o ego que Freud não define, e pergunta do que o ego é feito, do que o eu é feito. Porque não existe um eu vazio. E então, o Lacan vai dizer que o eu é feito de tristeza, de indiferença, de ódio, de desejo. Mas quando você pergunta: você tem ódio? É do outro. Você tem medo? É do outro. Você tem desejo? É do outro. Então, você é feito de pedaços do outro. Você tem medo do outro, você tem desejo do outro. Então, essa coisa de estar bem com você, é estar bem com todos. Porque, quando você não está bem com você é quando você não está bem com o outro. O eu preenchido por pedaços dos outros. 

,,, o vocabulário pode ter diminuído, mas a musicalidade aumentou. Quando um adolescente fala “legal”, ele fala “legauu”. Conforme a entonação, ele tem um sentido. É a musicalidade da palavra que eles têm. Ela serve de não, serve de sim, serve para um monte de coisa. Conforme a música que ele faz.

A metáfora está mais no corpo?

Acho que eles ganham musicalidade. A palavra é uma coisa muito bonita, porque é uma coisa que... Por exemplo, nós estamos aqui no Ocidente, se você pega a Bíblia e a Gêneses, por exemplo, a palavra precede. É a que organiza o caos. O Deus chega e primeiro ela fala: “faça-se a luz”, e a luz se fez. “Façam-se as águas”, e as águas se fizeram. Havia sempre um palavra dentro do Gênese para inaugurar o mundo. O que inaugura o mundo é a palavra. Então, você pega lá no início como a palavra pode fazer isso. Depois, você pega lá no Novo Testamento de S. João: “no princípio era o Verbo e o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.

Então, o que é o homem? O homem é um verbo em carne viva. E o que é um verbo? É uma palavra que tem movimento, é uma palavra que tem ação. Andar, pular, cantar. O verbo é uma palavra de ação. E o que é uma palavra de ação? O verbo tem três tempos: presente, passado e futuro. E o que é a vida? É presente, passado e futuro. A gente cumpre o verbo. Então, o homem é essa palavra encarnada, essa palavra fascinante.

Mas, acontece que, se você pegar esse verbo – é interessante observar – “eu tenho três tempos, eu sou um verbo encarnado, tenho passado, presente e futuro”. Mas, passado é uma coisa que eu jamais vou poder tocar, eu jamais vou poder viver o dia de ontem, a não ser fantasiosamente. O futuro, eu também só posso viver fantasiosamente: eu acho que daqui a pouco eu vou sair para jantar. Mas, isso é tudo uma fantasia, pode não acontecer nada. Então, o que é o presente? O presente é onde está ancorada a fantasia do passado e uma fantasia do futuro.

Então, o homem é um ser da fantasia. O homem é a fantasia e a gente não se deu conta disso. A gente não se deu conta, principalmente na Educação, que todo real é uma fantasia. Então, quando eu deixo o outro fantasiar eu estou deixando ele acrescentar mais uma coisa nova. Essa cadeira que estou sentado, antes, ela foi a fantasia de alguém. O copo que eu bebo água passou pela imaginação de alguém. Todo o real é uma fantasia que ganha corpo. Então, quando eu deixo essa fantasia aparecer é quando eu faço o mundo crescer, que eu imprimo o mundo. O que é a arte? É o tempo de fantasia.

A mentira é uma verdade que deixou de acontecer. Fantasia e real seriam próximos?

Fantasia se torna real na medida em que o Fernando pintou aquele quadro e já não é mais a fantasia. O que é a fantasia? É uma coisa tão interna que a gente só conta para as pessoas que a gente ama. Ela é tão verdadeira que você conta só para quem você gosta muito. O artista é um pouco descarado e conta para todo mundo. Mas, no cotidiano, a fantasia é uma coisa que eu preservo às pessoas que eu amo. Só o amor que move a fantasia. O homem é uma grande fantasia. Eu estou aqui com vocês, mas ancorado em mim tem um passado que eu não posso tocar nele e um futuro que é imprevisível. Eu fantasio que eu vou amanha fazer isso, mas não tenho segurança nenhuma disso.

A gente só fantasia aquilo que a gente não tem. A fantasia é a falta. Então, a arte é o que me falta. Eu escrevo o que me falta. E o sujeito lê o que falta nele. Entre o escritor e o leitor há um diálogo de faltas. Então, um diálogo muito frágil, muito tênue, um diálogo muito sensível, muito refinado. Eu não vou escrever o que eu tenho, eu sempre escrevo o que eu não tenho. Se a arte é feita de fantasia, ele só fantasia o que não tem. O que eu tenho não é a questão. A arte tem essa coisa, passa por essa delicadeza.

O movimento do Anísio e da Helena, não era um projeto para essas faltas do país?

Era. A arte que acrescenta, que torna o homem melhor, que faz o melhor de si.

E hoje?

Não.

Então hoje não falta nada? Ou estamos no discurso fanático? Projetos que são planejamento, mas não que são declarações de ausências, de falta.

A gente não deu conta de saber... É uma pessoa que deu conta de tomar posse dos seus limites. Uma consciência da falta. Porque a Emilia Ferreiro teria dado uma contribuição muito maior à educação brasileira se ela tivesse dito que é preciso o sujeito construir o seu “auto-conhecimento”, ao invés de construir o “conhecimento”. O conhecimento em francês é uma palavra linda, (?), então, (?) é nascer e (?) é nascer com o outro, então o conhecimento é o diálogo. Definir o ensino como a falta é muito mais sensível, muito mais humano. É o ser da falta, é o ser que perdeu o paraíso. A gente conheceu o paraíso, todo mundo conheceu o paraíso, a gente passou nove meses vivendo na barriga da gente, e a gente não tinha necessidade de absolutamente de nada. É o estado do nirvana. Nascer, então, a gente ganha a vida, mas também ganha o abandono. Nascer é perder o paraíso e a vida inteira a gente vai passar, como diz o Freud, tentando encontrar esse paraíso perdido, encontrar a completude, que a gente nunca vai encontrar.

E é nesse ponto que a sociedade de consumo joga. Na criação do desejo. Acho que se eu tiver o carro daquele modelo tal eu vou ser a pessoa mais feliz do mundo. Aí, eu compro e falo: Não, a minha garagem não está cabendo o carro eu, preciso de uma casa com duas garagens. Aí, se faz uma casa com duas garagens e se vê que não se queria só aquela casa, mas uma outra... Quer dizer, essa coisa, esse vazio, esse buraco imenso que a gente tem, que não preenche nunca e que é, na origem, que a gente foi Adão. E Deus expulsou Adão do paraíso. Então você vai trabalhar e se sustentar com o seu próprio trabalho.

Ao nascer, a gente repete a história de Adão. Com muito mais riqueza, porque... Uma coisa que Adão deve ter sofrido muito, foi porque ele não teve infância. . Ele não teve a lembrança da infância – o que nós temos. Interessante você observar que Adão nunca teve infância. Não tem lembrança da origem. Ele já caiu no trabalho. Ele não passou pelo prazer da infância, pelo prazer da descoberta. Porque, ao mesmo tempo que você ganha o abandono, a vida te dá a capacidade de fantasiar. Então, você entra para o mundo com a capacidade de fantasiar o mundo, de fantasiar todas as coisas.

Então a chuva é o chicote de Deus que bate no céu... Essa vontade de entender as coisas que só a fantasia ampara. Na infância você é amparado pela fantasia. Seu grande companheiro de infância que dá conta de suportar o mundo do nascimento em diante é a fantasia.

O olhar é uma coisa muito interessante. Eu até falei do ponto de vista do Marleau-Ponti, mas olhar é só ver a casca. Você só vê dentro com a fantasia. Olhar só me mostra as cascas. Para eu saber o que tem dentro da televisão é só quando eu fantasio. Se eu quiser saber o que tem dentro de uma pessoa, só com a minha fantasia. O olhar é muito raso, a fantasia que vai ao fundo, que vai dentro.

Quando o menino cria é que a gente vê por dentro.

Você tem que deixar o outro dizer, você tem que deixar o outro falar, porque aí você sabe que ele é. Eu vou estar sempre imaginando, que é a grande teoria psicanalítica. A palavra é tomada na psicanálise como objeto de cura, através da palavra. Aí, eu acho que a melhor definição de psicanálise, quem deu  não foi o Freud, não foi o Lacan, não foi nada. Quem deu a melhor definição de psicanálise foi Clarice Lispector, que diz o seguinte: o que a gente fala e o que a gente pensa existe uma distância tão grande que a gente só pensa depois que fala. É o próprio trabalho do psicanalista, devolver a você a sua palavra. Ele devolve para você as suas palavras. É essa palavra que é, essa palavra fantástica, que é a palavra geradora.

Hoje, a psicanálise está nesse grande momento. Eu acho que a psicanálise é de uma humanidade mais profunda do homem, porque eu acho que essa psicanálise, os sujeitos tomam posse da fala.

Você falou que tinha um projeto de falta do país. E hoje não. O que na realidade mudou? Quando eu leio o Manifesto, ou quando leio as cartas, eu tinha a sensação de que tinha uma relação de amizade.

Era um amor ao trabalho, uma confiança no trabalho, que não era para me manter. Eu trabalhava pelo prazer de trabalhar. Hoje as pessoas trabalham para sobreviver, vou trabalhar mais para comprar um carro, “eu vou trabalhar mais para comprar isso”. A gente trabalhava, antes, pelo prazer de trabalhar, pela confiança que a gente tinha no trabalho.

E a relação entre vocês?

Muito simpática, muito amiga, profunda. Admiração, tudo isso. Havia uma troca, de fato, de experiências. Era um outro tempo, não tinha essa cabeça que tem hoje. O mundo era muito mais lento. A gente trabalhava mais com o refinamento da pessoa. A gente sabia que a educação, ela ocorre na escola, mas a educação para nós era um apêndice da cultura, a cultura é muito maior. E a escola é aquele espaço que recolhe da cultura o que ela não quer que fique esquecido e leva, porque a cultura é muito maior. A educação, a escola é um apêndice. Quando eu vejo as pessoas falando assim hoje “escola e cultura”, “educação e cultura” eu fico completamente abismado. Como é que dão conta de distanciar isso? Ela não dá conta de perceber que o trabalho dela é de consumir essa cultura, de criar consumidores desse mundo cultural.

O meu objeto de trabalho como escritor é muito bom porque me dá muita liberdade para falar as coisas que eu penso. A palavra “ensinar” é uma palavra muito feia, é colocar um outro acima. Educação não é isso, é levar o sujeito a ser dono do seu destino. Então, ela vai “ensinar”, isso é uma palavra cigana, “coloque isso na sina”; a sua sina é isso, você não pode sair disso. Não, a educação não, é um momento em que você simplesmente pode confiar que o outro é capaz de escolher o seu destino. É uma liberdade, o processo é de libertação.

Esse é o problema da palavra. A palavra é uma faca de dois gumes, a mesma palavra que condena é a mesma palavra que perdoa. Então, trabalhar com essa palavra é uma coisa muito interessante. Eu trabalho com esse objeto. Toda palavra é composta, não tem nenhuma palavra simples. Quando eu digo “pai”, para um é aquele que me criou, para outro é aquele que me ama, para outro é aquele que eu conheci e eu só disse “pai”. Agora o resto está no outro. Interessante você pensar isso. E a escola não gosta dessas coisas.

A escola manda a criança ler um livro para dizer qual a mensagem que o escritor quis passar. Ao invés de dizer, isso aqui é um livro, isso aqui é uma cadeira, isso aqui é uma parede. O livro é um objeto, o leitor é que é o sujeito. O objeto não diz nada, o sujeito que tem que dizer o que ele acha desse objeto. O leitor que tem que dizer o que ele achou do livro, não é o livro que quer passar mensagem nenhuma. O sujeito é que tem que dizer para que serve essa parede, essa cadeira, esse livro. O homem é o sujeito que fala, o homem é o que nomeia.

Inclusive, a primeira coisa que a gente ganha no mundo é um nome, é a palavra. Às vezes, antes de nascer você já ganhou uma palavra, você já ganhou o seu nome. O primeiro presente do mundo é a palavra. E começa no próprio Novo Testamento. O que aconteceu com Nossa Senhora? Nossa Senhora ficou grávida da Palavra do Anjo. A palavra é a vida, realiza aquilo que ela anuncia. Ela não duvida e vira mãe. A palavra tem esse poder, essa coisa fascinante do poder em si. É esse o objeto que a gente trabalha, né?

A gente passa por um outro caminho. Aquilo que eu estava falando com vocês. Para ensinar o menino a nadar, você tem que saber nadar. Para ensinar o menino a jogar futebol, você tem que ensinar as regras do jogo, para ensinar o menino a escrever você tem que ser alfabetizado e para você trabalhar com a arte-educação você tem que ser artista. Se não você não sabe como esse mundo é constituído, senão você não cria, você não tem o prazer em fazer carinho em você... Porque criar é fazer carinho em mim. Quando eu escrevo um texto que eu gosto, eu venho para a janela, acendo um cigarro, feliz comigo e eu sou meu amigo, meu companheiro. Então, quem não cria não sabe o que é isso, não sabe o que ocorre dentro do sujeito quando ele cria.

O escritor e o educador, como estão juntos?

O educador e o escritor, eles convivem muito bem, depende do conceito que você tem de educação, né? Porque eu vejo que é difícil as crianças aprenderem a ler na escola. Essa dificuldade das crianças lerem e escreverem? Porque ela não tem um professor que diz assim pra ela... Você tem que dizer: vamos aprender a escrever? Primeiro você levantar no menino a história dele, a vida dele, a valorizar isso tudo para despertar no menino a vontade de escrever. Porque eu também só escrevo quando eu tenho o que dizer. Se eu não tenho o que dizer, eu não escrevo.

A criança na escola, só vai aprender a ler e a escrever quando ela descobrir que ela tem o que dizer e que ela gosta de saber o que o outro disse. A leitura vem daí. Por que de repente você vira um leitor? E é tão bom ser um leitor, porque você se afasta dos livros, ou os livros conversam diante de mim, um com o outro. Eu leio com ele e ele me fala: “mas fulano escreveu isso melhor do que sicrano”. Eu deixo eles conversarem na minha frente, eles conversam comigo horas seguidas. Eu tiro um daqui e coloco a idéia do outro lá... A escola, se ela tivesse primeiro essa necessidade com a linguagem, saber que o sujeito tem uma origem, tem uma fantasia, tem um desejo, tem um pai e uma mãe ou não tem um pai e não tem uma mãe... Deixa ele levantar isso! Se a escola for o lugar da palavra, do aluno, ele vai querer escrever para registrar essa palavra.

Aprender a ler e a escrever sem falar do que eu tenho a dizer: pra quê escrever? Tem hora aqui em casa que eu me dou muito bem como analfabeto. Tem dia que eu passo completamente analfabeto, sem ler nem escrever. Eu não escrevo e não leio. Então, eu acho que a educação, não essa nesses trampos dessa precariedade que é o homem, do dinamismo que é esse verbo encarnado que está sempre em movimento. A arte não. Arte é feita de falta. E é tão interessante essa falta que a arte tem... Você pode estudar todas as teorias de arte, o que você quiser. Arte é aquilo que você não dá conta de ver sozinho. A beleza te leva a uma solidão profunda e você só encara quando você traz alguém para ver com você.

Você está lá no Museu do Prado, sozinho em Madri, de repente, você vê um quadro, uma escultura do Adriano. E você pensa: “Mas Fulana que deveria ver isso!” Aí, você vai lá e olha... Você vai ao cinema e acha o filme lindo. E antes de terminar você vai lá e fala: “Mas era Fulano que deveria estar aqui”. É uma coisa erótica a arte, ela tem que juntar, aproximar, amarrar. Ela não dá conta sozinha.

Mesmo o pôr-do-sol, que é muito pouco erudito – a Universidade vai dizer que o sol é muito pouco erudito! – você vê o pôr-do-sol e fala: “Fulano que deveria estar aqui comigo”. Você não dá conta de ver livre do outro! E arte... É tão bonito isso que você vê, por exemplo, o césio de Goiânia... Aquele desastre que teve lá, do sujeito que descobre uma cápsula, que quebra, e de dentro da cápsula tem uma pastilha e exala uma luz azul e prateada. E ele fica tão encantado que dá de presente para as pessoas que ele mais ama e guarda. Ele guarda um pedacinho para o irmão que vai chegar de viagem, debaixo da cama! Você não dá conta da beleza! A beleza é o que nos aproxima, que nos amarra, que nos junta.

(...) Pausa

... a melhor porcelana, o melhor vinho, os melhores champanhes, as melhores codornas e tudo e passa para a mesa para os outros comerem. É o melhor dela, e ela passa para o outro. Ela cuida daquela comunidade toda através de uma refeição. A mulher que bebe um copo d´água no início, depois experimenta o vinho, quando põe água na boca ela faz uma cara feia. Ela já conhecia o vinho.

A arte tem essa função, que é muito movedora. Eu não admito colocar uma arte que tem essa função tão brilhante, essa função humana, essa função tão fantástica de trabalhar com a produção humana, com a fantasia, trabalhar com a falta, trabalhar com tudo isso, e colocar dentro de uma escola como a pedagogia está fazendo.

A escola quando coloca a mão na arte, ela enfraquece a arte. Ela faz da arte um instrumento pedagógico e a arte é muito mais do que isso. O que mudaria da arte na educação no Brasil não é o curso de arte-educadores, mas é o conceito real de Educação. Arte-educação deveria estar na grade de formação de pedagogos, de diretores de escola, de todos os professores. Esse professor seria um criador, que todo mundo é.

Todo mundo tem uma ânsia de beleza que é uma coisa muito interessante. Tem um texto da criação do mundo, que é o texto mais antigo do mundo, e é um texto em aramaico, que Deus criou o mundo em três dias.

Não eram sete?

No primeiro texto é em três dias, é o mais antigo. No primeiro dia, Ele cria o vento, no segundo dia, a terra, e depois, Ele cria as águas. Mas aí, Ele olha e fica tão triste que a palavra é até “decorar”. E no quarto dia, Ele tem necessidade da beleza, então Ele decora o fundo do mar com os peixes, as algas, as estrelas. No quinto dia Ele olha para a terra... Resolve decorar a terra com as árvores, com os répteis, com tudo isso. E depois, no sexto dia, Ele cria o firmamento, Ele põe as estrelas, as constelações, com sol e com lua. E no sétimo dia, Ele fica tão encantado com tudo o que Ele fez que ele cria o homem para ver junto com Ele.

Que é o “Salmo 9”, Que é a vaidade de Deus. Ele não dá conta de ver isso sozinho... E é fascinante isso! Dentro do processo de religiosidade também, nós não sabemos absolutamente nada de Deus. Não sei se Deus almoça, janta, se ele corta cabelo, se ele anda de calça comprida, se ele anda de camisola, se ele tem olho azul, se ele tem olho verde. Eu não sei absolutamente nada de Deus. Eu só sei que, em algum dia, Ele teve a necessidade de criar o mundo.

Então, quando você cria, você imita o criador. Há uma relação entre criador e criatura. Por isso que na criação você faz o melhor de você, porque há uma relação entre criador e criatura que determina isso. Então, eu trabalhei com arte-educação. Aí, a gente começou esse movimento que eu comecei aqui. Depois, a gente foi para a Escola de Artes do Augusto, no Rio. Tive contato com um pessoal que fazia arte, que era Fayga Ostrower, o Pedro, o Ilo Krugli... Que faziam arte, que não estava lá em cima de milhões de teorias... Que na Holanda é assim, Inglaterra é assim, na Alemanha é assim...  Estavam com a mão na massa. A gente sabia que o sujeito tem necessidade de criar, necessidade da beleza.

Arte-educação naquele tempo, para nós, era criar o espaço para o sujeito estender a intuição poética que ele tinha do mundo. Levar para o campo da arte o seu sofrimento de viver, levar para o campo da poesia a precariedade do ser humano.

Espaço de partilha?

Espaço de partilha, espaço da troca, espaço erótico, de juntar, aproximar, de estar junto, de ver junto, de trabalhar junto. Depois houve um outro grupo – que não interessa mencionar nomes! – que resolveu teorizar em cima disso. Eles não dão conta de saber que toda estética vem depois da obra pronta. A estética é uma reflexão que se faz a partir do criado. A partir do objeto criado, faz-se uma leitura estética, que para filosofia é completamente complicado, porque a filosofia nunca conseguiu definir se existe um objeto estético capaz de promover meu olhar como estético, ou se meu olhar é tão estético e sensível que eu promovo as coisas como estéticas. Não se saiu disso. Isso continuou junto.

Aí, vem um grupo que começa a teorizar. É um grupo que não permite a liberdade. É o que eu estava falando com a Denise: tem gente que não dá conta de pensar sozinho. Eles só pensam a partir do outro. Fulano disse isso, Sicrana disso aquilo, eu li Sicrana e você, o que tem a dizer? Nada. Você só fala o que o outro disse.

Convidou tanto o outro para vir que virou o outro...

É. Abriu tanto que virou o outro. Não deu conta de saber que o outro só te tira do prumo, você tem que voltar ao prumo sozinho. O prumo é seu, você fica em pé sozinho. Você lê, se informa, mas você se informa para desequilibrar o que você sabe, para ser novidade o que você sabe. Eu leio para ser novidade o que eu acho que sei. Aí, vem um outro e diz: Não, não é por aí. Aí, você leva um susto, e não sabe qual dos dois e você pensa e repensa. As pessoas começaram a falar a partir do que os outros faziam. A partir do que existe na Holanda, na Inglaterra, a partir do que existe em Paris. E aí? E faz o que? Faz da arte-educação uma matéria chatíssima para entrar no currículo da escola. Que você sabe que tudo que entra no currículo da escola passa a ser detestável?

Se você quiser acabar com o futebol do Brasil você põe no currículo da escola. Você põe lá... Você faz um movimento para acabar com o futebol brasileiro... Coloca futebol no currículo da escola! A escola vai determinar o seguinte: para jogar futebol tem que ter um campo de tantos metros quadrados... Tem que ter onze de um lado e onze de um outro. Tem que ter uma bola que pese tantos quilos. Tem que ter um juiz. Tem que ter um bandeirinha. Aí você acaba. O futebol no Brasil existe porque as pessoas jogam em qualquer lugar. Com calção, sem calção, de chuteira, descalço, tem 10 de um lado e 9 do outro, a bola não é bola é uma bucha de laranja, é uma bola de meia, é uma lata de cerveja, tudo serve para chutar e vai aquela coisa livre e maravilhosa. Então se você quiser acabar você coloca no currículo da escola: a trava da chuteira tem que ter tantos montinhos daqueles, o calção tem que ter tantos centímetros... E aí você acaba com isso tudo. Ela não dá conta da liberdade, ela ensina. Ela não trabalha com o sujeito para dizer que o sujeito é um ser autônomo, que um mundo é um grande livro sem texto e o trabalho nosso é legendar. Cada um legenda como pode.

E aí chegou o povo e o que vocês fizeram?

Chega esse povo com essa “teoriazada”. Eu virei escritor, fui cuidar da minha literatura. (?) virou escritora, Cecília foi dirigir o conservatório, Augusto morreu, d. Noêmia voltou para Recife, sabe? E os meninos continuam achando que isso é uma chatice, que não serve para nada. Não sabem se dá nota ou se não dá nota, se põe no currículo só pintores brasileiros ou também os estrangeiros. Virou uma coisa que ao invés de ser um grande prazer – a arte quer o prazer, tem um compromisso com a beleza – a arte virou uma tarefa que todo mundo quer se livrar dela.

A arte-educação no Brasil, e acho que posso até generalizar, ela só vai ter um desenvolvimento quando a gente deixar de formar especialistas em arte-educação. Mas que todos os educadores passem pela experiência da criação. Todos. Aí você vai ver uma grande diferença.

Você vê uma grande diferença, por exemplo, no programa da arte-educação na França e no Brasil. Porque as crianças na França – país que eu conheço mais – elas têm um convívio muito grande com a arte no cotidiano. O próprio turista que circula na França, o tempo todo em Paris, já cria uma curiosidade: o que esse povo vem tanto ver nessa igreja, nesse museu? Tanta gente do mundo inteiro que vem aqui para ver essa ópera. Eles já têm essa curiosidade que o próprio turista cria. Além de eles conviverem constantemente com aqueles monumentos, com aquela beleza, com aquela poesia.

A música francesa é interessantíssima. O valor que eles dão ao compositor, ao cantor, é antes de qualquer coisa! Eles cantam, mas eles sabem de quem é a música, de quem é a letra. Eles sabem tudo, aquilo é fundamental, aquilo tem dono, aquilo tem uma propriedade. Aquilo é o cotidiano deles. Claro que é um pessoal muito mais voltado para conviver com essa cultura. É muito mais fácil você discutir um programa de arte-educação em Paris, que deve ser completamente diferente de um programa de arte-educação brasileira. Não deve ter nada a ver. Não pode ter nada a ver.

O programa de arte-educação da Holanda não deve ter nada a ver com a arte-educação do Brasil, ou qualquer outro tipo de país. É outra trama, é outra tensão. Não dá para fazer isso que eles estão querendo fazer, essa coisa, esse movimento universal de arte-educação. A gente tem que ser simples, ser brasileiro, começar onde a gente está, não é começar de onde o outro está, não. É começar de onde nós estamos, aqui, no Brasil, com essas dificuldades todas, com esse povo precisando ser reconhecido, com esse povo...

Outro dia eu estava aqui nesse restaurante aqui da frente almoçando. Estava eu, a Eliana Marta, que é uma doutora em História da Educação, e Chartier, que trabalha com a leitura na França. Sentamos os três. Aí chegaram três de favela, três pivetinhos: dois meninos e uma menina. Entregou um papelzinho para cada um de nós e a letra era muito feia. E a Eliana perguntou: quem escreveu isso aqui? E a menina disse: fui eu. Ela disse: então você lê para mim já que você me entregou. A menina pegou o papel e leu, era lindíssimo o texto que ela leu. Você que escreveu? Ela falou, não. Na favela tem uma biblioteca e copiei o Mario Quintana. Eu gosto muito do Mario Quintana. Papo encerrado! As pessoas têm uma sensibilidade para descobrir sozinhas, elas se educam também em solidão. Se educam. Ficou essa coisa tão formalizada que começou a dar uma profunda preguiça.

E as ONGs? Você não acha que esse povo não tinha que estar na escola?

Como é que a escola não sacou que o sucesso das ONGs está justamente na liberdade que elas propiciam? Elas convidam o outro para ser livre, para expressar a beleza que tem, que sabe

Você acha que tem uma nova geração? Aqui em Minas?

Tem movimentos interessantes aqui de ONG. Tem o pessoal que trabalha com literatura em favela. É uma ONG de uma menina que começou um trabalho maravilhoso... Ela era fotógrafa e resolveu fotografar jogos de futebol em favela. Depois as fotografias dela foram premiadas na Holanda e fizeram um livro de arte desse tamanho sobre o futebol no Brasil, com as fotografias dela. E ela ganhou um dinheiro grande e voltou para o Brasil. E foi na favela perguntar para os meninos o que eles queriam fazer com o dinheiro que ela tinha ganhado. Os meninos não pediram um campo de futebol, pediram uma biblioteca. E ela construiu uma biblioteca com o dinheiro do prêmio, e tem um trabalho maravilhoso! E eles continuam jogando futebol, jogando tudo.

Tem uma ONG que trabalha com circo que é um belo trabalho. Tem várias ONGs...

São herdeiras?

Não sei se chegou a informação. Mas também não sei se precisa ser herdeiro, a arte é uma necessidade. O homem tem necessidade da beleza. O homem procura, anseia pela beleza. Sabe? Ele anseia isso porque a beleza resgata a sua dignidade. É uma prova de que você é capaz de criar o bom.

Eu que tive a oportunidade de desenvolver o meu lado bom, mas eu, por exemplo... Uma grande dificuldade... Dizem que você pode matar uma pessoa, né? Você só vai para a cadeia depois que você comete o segundo crime... Depois você é ré. Eu fico escolhendo quem é que vai ser a pessoa que eu vou matar. Eu tenho esse lado. Eu não decidi ainda quem vai ser minha vítima primeiro. Porque aí eu não vou ser preso, réu primário. Esse lado mal todo mundo tem, né?

Mas não precisa realizar, né?

É, mas aí a gente encontra um outro caminho.

Mesmo você estando dentro da Secretaria, havia, naquele tempo, um grande movimento sólido dentro das escolas (época do Anísio)?

O grande momento da arte-educação no Rio de Janeiro não pode deixar de esquecer nenhum minuto a figura da Nizeta Ferreira. Que ela dava um chute no balde. Vamos deixar de fazer elitismo com isso. Você não pode considerar nunca a função que a Nizete teve, porque, de repente, ela mostra que a coisa é afetiva, é interna, não é de fora para dentro, é de dentro para fora. Era uma figura assim...

E do Levi-Strauss que veio para o Brasil, fala com índio e também faz arte. Analfabeto, não sabe ler, não fala português, não fala língua nenhuma, fala a língua dele e faz um grande trabalho. Dá um chute no balde! Tira da mão desse povo que quer que a coisa aconteça só na formalidade nas escolas e diz que não, isso acontece nos hospícios, nas tribos indígenas, nas tecedeiras do nordeste, no povo que faz argila em Caruaru, é só ter um espaço para isso acontecer. A nossa função é criar um espaço para a arte acontecer. Eu digo sempre para os professores: não me pergunta como eu levo uma criança a ler, me pergunta o que eu devo fazer para não interditar o prazer que a criança tem de ler! É esse o meu problema.

Porque toda criança gosta de livro. Ela nasce e ganha um livro. Ela lê de cabeça para frente, de trás para frente, de cabeça para baixo, ela conta história... A ler, e pára no meio, de frente para trás. Ela leva para cama, põe debaixo do prato para almoçar e tal. Aí, ela lê maravilhosamente bem, lê, inventa. Depois, ela entra na escola e não quer mais. Porque a gratuidade deixa de ser permitida. Você lê para saber e eu quero saber o que você aprendeu disso. Aí, acontece o grande problema da leitura. A leitura rompe por aí. Porque toda criança adora um livro.

Eu vejo pelo meu filho e amigos dele que vem aqui em casa... Um monte de livro... Brinca, mostra pro outro, meninos de 3 anos, de 4 anos... Depois, chega na escola e não quer mais ler. Por que quando você acabar de ler eu vou perguntar qual o personagem principal! Ela faz isso. Ela nunca deu conta... Por exemplo, a escola, da literatura, por exemplo. O professor nunca deu conta do espanto que é ler aquele poema da Cecília “Ou isto ou aquilo”. Aquilo é uma teoria do Sartre, do mais profundo existencialismo, essa coisa da escolha. Nascer é ser condenado a escolher, Sartre fala isso. O professor não é capaz de se espantar com aquilo, que é uma grande tese sobre a escolha? Como é que você vai fazer isso?

Tem um poema da Cecília que, se o professor soubesse gramática, quando ele fosse dar esse poema ele levaria o maior susto! É um poema que se chama “As três meninas”: “Arabela abria a janela, Carolina erguia a cortina, Maria olhava e sorria e dizia bom-dia”. Depois, ela volta, “Pensaremos naquelas meninas” – tudo no passado! – “que viviam naquela janela, uma que se chamou Carolina e outra que se chamou Arabela, mas a nossa profunda saudade é” – aí vem para o presente – “é de Maria, Maria, Maria, que dizia com voz de amizade, Bom dia”.

Quer dizer, ela traz o passado todo como “é”, aquilo ali radicalmente. Quer dizer, eles passam isso batido, eles não dão conta. Tem uma teoria, hoje, que diz o seguinte: que para a criança gostar de ler, ela precisa ler um autor com profundidade. É o que a gente vai chamar de leitura intensiva. Você vai ler esse autor e vai descobrir todas as maldades daquele texto, todo os truques que ele usa para conquistar o leitor, todas as maneiras de olhar que estão ocultas... Você vai longe! Mas a escola não quer isso. A escola quer leitura extensiva. Isso: hoje ela lê Bartolomeu, amanhã ela lê Ruth Rocha, e depois de amanhã, Ana Maria e depois de amanhã, lê Pedro Bandeira... E no fim, ela leu vinte, trinta livros, mas não sabe ler. Não há aprofundamento na leitura, não há um encantamento. Faz uma leitura extensiva. Quantos mais livros ler, melhor.

Um lê Grande Sertão: Vereda, de Monteiro Lobato e outro lê dez “Sabrinas” desse... A leitura tem vários níveis de leitura, e você precisa convidar o aluno a perceber os vários níveis que a leitura tem. Você tem que chamar atenção dele para os encantos. O professor só cria hábito de aluno com o aluno se ele tiver hábito de leitura. Se ele não tiver hábito de leitura ele não vai ensinar coisa nenhuma. Se não serve para ele, por que vai servir para o aluno?

Eu resolvi continuar meu trabalho de arte-educador dentro da literatura. Sei que as crianças lêem meus livros, sei porque recebo milhões de cartas por dia. Um dia, eu recebi uma carta com uma nota de um real dentro. A criança escreveu comentando o meu livro e mandou um real para mim para eu comprar o selo e para eu responder a carta dela. Sabe? É uma coisa! Eu recebo carta o tempo inteiro, esses meninos tem e-mail e me mandam e-mail o tempo inteiro! Outro dia eu recebi uma carta do interior de Minas Gerais. A mãe que escreveu a carta. Mandaram minha filha ler na escola “Por parte de pai” e ela leu. E chegou em casa e falou comigo “o mãe, lê esse livro para a senhora ver!” E eu li e mandei para a minha mãe. Mandou para a avó da menina e não queria devolver. Aí ela me escreveu pra ver se eu não podia mandar um para ela.

Quer dizer, tudo bem... Eu não sou arte-educador porque eu não estou dentro da escola. Eu não agüento mais esse negócio de sala de aula, eu não tenho mais saúde para isso e nem idade. Porque viver também dentro da filosofia é um processo de subtração, não é um processo de soma. Viver um dia é perder mais um dia. Então a criança tem muito mais dias para subtrair do que eu, a minha conta já está muito acabada. Eu já não tenho mais esse pique que a criança tem.

Mesma na literatura, eu escrevo e falam que eu escrevo para criança, mas eu tenho muito certificado, muito diploma, um monte de papelada que eu nem sei o que a família vai fazer com isso quando eu morrer, jogar tudo fora porque a família não tem interessa em nenhum por isso que eu faço. Eles lêem as coisas que eu escrevo, mas as coisas que eu tenho, diploma que eu tenho, nada disso. Mas eu não tenho diploma. Eu nunca recebi uma autorização das crianças para escrever para elas.

Affonso Romano de Sant'Anna - Silêncio amoroso 2

SILÊNCIO AMOROSO 2

Affonso Romano de Sant’Anna

Preciso do teu silêncio
cúmplice
sobre minhas falhas.

Não fale.

Um sopro, a menor vogal
pode me desamparar.

E se eu abrir a boca
minha alma vai rachar.

O silêncio, aprendo,
pode construir. É modo
denso/tenso
de coexistir.

Calar, às vezes,
é fina forma de amar.

Affonso Romano de Sant'Anna - Os amantes

OS AMANTES

Affonso Romano de Sant'Anna

Os amantes, em geral,
passam noites inteiras
inquietos e ansiosos
- também eu.

Os amantes, em geral,
choram sobre as cartas,
dão telefonemas aflitos
- como eu.

Os amantes, em geral,
passam horas figurando
o corpo amado,
curvas, gestos, preferências
- como eu.

Os amantes em geral,
são patetas, maus estetas,
fazem versos ruins
e se chamam poetas
- como eu.

Affonso Romano de Sant'Anna - Estão se adiantando

ESTÃO SE ADIANTANDO

Affonso Romano de Sant'Anna

Eles estão se adiantando, os meus amigos.

Sei que é útil a morte alheia
para quem constrói seu fim.

Mas eles estão indo, apressados,
deixando filhos, obras, amores inacabados
e revoluções por terminar.

Não era isto o combinado.

Alguns se despedem heróicos,
outros serenos. Alguns se rebelam.

O bom seria partir pleno.

O que faço?Ainda agora
um apressou seu desenlace.

Sigo sem pressa. A morte
exige trabalho, trabalho lento
como quem nasce.

Affonso Romano de Sant'Anna - Elaborando as perdas

ELABORANDO AS PERDAS

Affonso Romano de Sant’Anna

Perco, em média, três poemas por semana,
Por descuido e desmazelo.

Ainda há pouco um solicitou-me a atenção
E, perdulário, fingi não vê-lo.

Ah, o que perco por soberba,
O que perco talvez por não aceitar
O que eu mesmo me ofereço.

Os que me vêem passar
Me pensam rico, no entanto,
O que perdi não tinha preço.

Adélia Prado - Casamento

Casamento


Adélia Prado


Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado - Antônio

ANTÔNIO


Adélia Prado


Pega na minha cabeça com suas mãos lindas enormes
que eu viro santa.

Me olha com seu olhar um olhar de amor impossível
que renuncio às pompas deste mundo.

Prometo não perturbar teu inabalável propósito de servir somente ao Senhor,
mesmo porque, com Deus, quem poderá competir?

Mas, de uma vez por todas, me deixa saber sem dúvidas:
tuas lindas mãos são lindas mãos de homem,
capazes das maravilhas que podem
as mãos dos homens nas mulheres?

A ti não peço esponsal, que outro marido não quero,
que outro não há pra me ordenar com sua voz poderosa: faz café.

Faz silêncio.
Faz amor carnal.
Traz meu cilício.

Vai passear lá fora enquanto eu rezo,
Taumaturgo, fala.

Me toca pra eu sossegar, que eu, loba, obedeço, mansa.

Abel Silva - Jura Secreta

JURA SECRETA


Abel Silva


Só uma coisa me entristece:
o beijo de amor que não roubei
a jura secreta que não fiz
a briga de amor que não causei.

Nada do que posso me alucina
tanto quanto o que não fiz,
nada do que quero me suprime
do que por não saber inda não quis

Só uma palavra me devora:
aquela que meu coração não diz;
só o que me cega, o que me faz infeliz,
é o brilho do olhar que não sofri.

(Musicado por Sueli Costa)