quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Octávio Elísio - O Cavaleiro da Utopia

O CAVALEIRO DA UTOPIA

Uma obra de arte deve provocar em nós a imaginação pela articulação do sensível e o inteligível. Provocar a imaginação, não apenas pela razão, mas, também, pelos sentidos. Valorizamos muito a razão, menos o sentimento, e empobrecemos nossa capacidade de imaginar, ver abaixo da superfície das coisas, ler além das palavras.

Quando San Tiago Dantas (D. Quixote – Um apólogo da alma Ocidental) imagina a resposta de Cervantes a quem lhe perguntasse a “significação abstrata” de sua obra, D. Quixote, ele nos remete à resposta de Goethe, que não sabia “que idéia procurei encarnar no meu Fausto”, e pede a seus interlocutores:

Ao menos uma vez tenham coragem de se abandonarem às suas impressões, de se deixarem divertir, de se deixarem comover, de se deixarem elevar, instruir, inflamar e encorajar por alguma coisa grande; e não pensem sempre que tudo está perdido quando não se pode descobrir, no fundo de uma obra alguma idéia ou pensamento abstrato.

Seguir o conselho de Goethe na leitura da obra de arte O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha é percebê-la cheia de mistério, inesgotável, às vezes inapreensível, ler além do que está escrito, buscando compreensão plena. Ouso dizer que é uma obra provocativa, que estimula a imaginação, incentiva muitas leituras.

O espanhol López Pinciano escreveu em Estética, nove anos antes da publicação do Primeiro Quixote, que o conceito síntese que ocupava lugar central no pensamento de qualquer escritor castelhano no princípio do século XVII era “deleitar ensinando”, essa era a tarefa que a literatura deveria se impor, misturando o estético ao pedagógico. Além da beleza, há o que aprender.

Ferreira Gullar fez, com sucesso, sua adaptação para adolescentes, e Augusto Frederico Schmidt (que lhe dedicou verdadeira obra-prima da prosa evocativa) analisou sua repercussão junto às crianças:

As crianças tomam D. Quixote como ele é: uma alma que guardou sua pureza intacta. Divertem-se os meninos com os moinhos que pareciam gigantes ao Cavaleiro, riem-se de suas quedas, dos seus esforços, da bacia de barbeiro transmudada em elmo de Mambrino pela imaginação irresistível – mas na verdade amam o herói e dele têm não raro piedade e se revoltam e tomam o partido do inverossímil, de que é ele, o Cavaleiro, campeão. (...) ‘Sofre tudo isto porque é bom’, disse-me uma menina (diante de uma gravura de Quixote caído por terra e humilhado). Nenhum crítico de Cervantes disse melhor.

Nestes quatrocentos anos do Primeiro Quixote, multiplicaram-se as análises críticas sobre a obra, trazendo-a à realidade do leitor, buscando a significação que assumiu na perspectiva do tempo. É comum retratar o Cavaleiro da Triste Figura como “um batalhador da justiça social ou defensor dos direitos humanos”, ou levar discussão interminável sobre o significado de suas loucuras, na luta contra moinhos de ventos, como se fossem gigantes, ou atacando rebanho de carneiros, como exército inimigo. Sem distinguir onde a virtude e a loucura se separam.

Na leitura de D. Quixote, de coração e alma bem abertos à imaginação, são absolutamente fascinantes os diálogos. Recordo aquele “das saborosas razões trocadas entre D. Quixote e Sancho Pança”, a propósito da carta enviada à “rainha da formosura”, Dulcinéia. (Cap. XXXI)

A propósito, quando mercadores lhe pedem prova de que “não há no mundo todo donzela mais formosa que a Imperatriz de la Mancha, a sem par Dulcinéia d’El Toboso”, diz:

Se vo-la mostrasse – replicou D. Quixote - , nada valeria confessardes tão notória verdade. A importância está em que, sem vê-la, haveis de crê-la, confessá-la, afirmá-la, jurá-la, defendê-la; senão, comigo estais em batalha, gente descomunal e soberba.

Surrado e apedrejado por persistir em suas ilusões, novos recomeços, depois de fracassos aparentes, D. Quixote, “cujas ações frutificam pelo exemplo e pela força espiritual que irradiam”, não oferece razão alguma, apenas pede que acreditemos. “Um louco que pode encarnar um ideal que o homem sonha, mas sua vida nega.

Em épocas como a que vivemos, O Engenhoso Fidalgo nos ensina a não abandonar o sentido da utopia. No conselho de Mia Couto:

O pessimismo é um luxo que só os ricos podem ter. Os pobres necessitam criar uma resposta fundada na invenção da alegria, na rejeição do niilismo. (...) Não se trata de romantizar a condição da miséria. Mas há que fazer justiça a esta habilidade de converter o negativo em positivo.

Mia Couto nos aproxima de D. Quixote para mantermos as esperanças.

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