Belo Horizonte, 14 de fevereiro, 46
Meu caro Otto Lara Resende:
São onze e meia da manhã. Roubo à Anatomia patológica alguns momentos – antes pudesse roubá-los todos – e escrevo para você. Depressa, sem muita análise, apenas para corresponder à veemência patética do seu apelo. Sua carta me chegou às mãos ontem pela tarde. É curiosa a coincidência – ontem me lembrei de você com uma insistência dolorosa, senti a sua ausência se concretizando em mim e exigindo um movimento qualquer de ternura. Mas você está longe, amigo, sem possíveis telefonemas, sem o conforto cálido do abraço e da conversa. Por isso, limitei-me a pensar em você, reconstituindo episódios, revolvendo velhos momentos de compreensão, de confidência e de abandono, momentos raros nos quais a Caridade brilhou acima do contingente e da nossa pobre e irremediável miséria.
A vida continua, Otto, destroçando a amizade, estremecendo as mais puras reservas de carinho, dilacerando sem dó aquilo que deveria permanecer, sempre, como um penhor do outro reino, como um facho de Esperança, como uma certeza de que o amor entre os seres é possível.
É engraçada essa sensação de que caminhamos para a desagregação, para o último estágio desse apodrecimento de nós mesmos, que é a solidão, solidão solitude.
Por que isso, meu amigo? Por que é que o tempo carrega consigo não sei que misterioso germe, que aos poucos vai nos dando a impressão de que crescemos, e nos dilatamos, quando na verdade nos dissolvemos, nos liquefazemos, nos perdemos. Por que é que o tempo não é apenas o ar que nos envolve, uma marcha luminosa para a imperecível unidade?
O erro está em nós mesmos, Otto, na nossa pequenez irremovível, na nossa incapacidade evangélica de “perder a vida”, como diz você. Em nome de ilusões, em nome de compromissos com o mundo, em nome de fatalidades biológicas, em nome de gloríolas vãs, em nome da medicina ou do direito, em nome de cartórios, edifícios, praias, orlas, lagoas, em nome da moral e da família, em nome de uma dignidade incompreensível, em nome especialmente de coisas inomináveis, perdemos aquilo que é o mais puro de nós mesmos, o mais lírico, o mais livre, o mais liberto, o melhor de nós mesmos, o que nos salva da morte e nos transfigura.
Esses são valores sem importância, Otto, porque não rendem juros nem fazem a pletora satisfeita das dialéticas salvadoras. Esses são valores inefáveis, e por isso inexistentes, valores que não pesam na balança, valores que não decidem, que não impulsionam, que não conduzem a nada, valores desconcertantes, patéticos, obscuros, desesperados ou ilógicos, que de alguma forma podem convir ao que está estabelecido, sólido e solidificado por uma civilização milenarmente errada, bojuda de pecado e de traições.
E é por isso, Otto, por isso é que eu absorvo você num indestrutível carinho, e vejo em você alguém que a Providência de Deus ligou a mim para me alertar, para me fazer melhor e mais generoso, para que tudo não ficasse perdido, entredevorado pala cega crueldade do mundo.
Esse espetáculo de você Evangélico lutando contra as exigências do grande açougue, essa irredutibilidade irredutível que existe entre você e o mundo, essa sua visceral incapacidade para viver, constituem para mim o mais belo testemunho de homem fiel a si mesmo, apesar de si mesmo, e me aponta a grandeza da Graça de Deus, tombando sobre o ser com a violência de um furacão apocalíptico.
Nessa luta eu torço para você, Otto, com toda a força de meus pulmões, com toda a pletora de minha demagogia, e se for preciso, farei discursos em praça pública, para dizer que você tem razão, e se você se suicidar, escreverei uma biblioteca inteira acusando o mundo de sua morte, e exigindo justiça bem às portas do Grande Tribunal.
Estou com você, Otto, para o que der ou vier. Aponte por enquanto, meu amigo, aponte muito porque chegará a nossa vez de bater. E se você se ferir na surra, venha até a mim, que pelo menos para curar suas feridas me deve servir esse lento, lentíssimo, e intragável Curso de Medicina. Curarei suas feridas, Otto, e te darei a mão, e nos sentiremos melhores. Não tenho dúvida quanto a isso, nem se deixe envenenar pelas traições, pelos descasos ou pela dificuldade de convívio. O “capote salpicado de estrelas” permanece, bem como permanecem miraculosamente intactos os passeios no Parque, o punho erguido e a esperança no milagre.
Não quero ver em você o vitorioso, o que conquistou glórias, louros, mulheres, honrarias, pedras preciosas ou caravanas olifantes. Sempre verei em você o Amigo; aquele que eu reconheço entre muitos – o que acende um sorriso na rude hora amarga. Repare, além do mais, Pagé, que essa possível declaração de amor não nasce de alguém que tenha dezessete anos. Ela brota das barbas de um homem e isso é muito grave.
Espero você com indisfarçável ansiedade.
Nem pode imaginar minha solidão, minha falta de convívio. Amigos não se improvisam, nem se inventam. Nem se transferem, nem se escamoteiam. Amigos são amigos, e amigo – o amigo de verdade – é você. Não vá sorrir, seu sacana, nem me considerar ingênuo, ou adolescente. Repito que essa carta escorre de uma barba áspera e humana. Ela tem a vibração puríssima dos que não sabem usar os subterfúgios. E sua última carta não é esta mesma carta, contornada, disfarçada, camuflada? Fale, imbecil, fale sem teias de aranha, fale sempre, imbecil.
Dê um jeito de voltar, quanto antes. Recomporemos juntos o nosso mundo, e junto havemos de nos descobrir um caminho. Pois muita coisa já descobrimos juntos, e a fecundidade do verdadeiro convívio é inesgotável.
Mando esta carta para a casa do Fernando, pois não sei seu endereço. Peço que você não a mostre. Ela é excessivamente delicada, e o lucidíssimo Paulo, por exemplo, haveria de achá-la bem estranha. Receba meu dinheiro, Otto, que preciso dele. E venha para sua terra, deixe de molecagens, menino, deixe de besteira.
Com o abraço do
Hélio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário