segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Fernando Sabino - À guisa de necrológio

FERNANDO SABINO, O HOMEM DE MÃOS LEVES E VELOZES

"Seus contos são leves e delicadas transposições líricas da vida. Mas se você não fizer coisas maravilhosamente bem-feitas como técnica, como estilo, como arte de escrever, como bom gosto espiritual, você será apenas 'mais' um." As palavras de Mario de Andrade são em resposta à carta de um escritor de 18 anos, que acabará de lançar seu livro de estréia, Os Grilos não Cantam mais.

O jovem precoce em questão é Fernando Tavares Sabino, mas tarde encurtou o nome, como aconselhou o próprio Mário de Andrade, para Fernando Sabino. E ele faz jus ao conselho do já renomado escritor ao atingir a 'maioridade literária' com o romance O Encontro Marcado (1956), tornando-se um exímio prosador.

Hoje, os livros de Sabino ultrapassam 30 volumes custam a sair da lista dos mais vendidos. Como sua narrativa ligeira, certeira e bem-humorada, o escritor consolidou a crônica como estilo literário, abriu um caminho novo para a literatura nacional e conquistou gerações de leitores. O escritor também soube, como poucos, misturar com graça e leveza fatos do cotidiano urbano com as suas reminiscências e lembranças da adolescência e juventude. Consagrou-se.

Morto às vésperas de completar 81 anos de idade, Sabino era o único dos amigos inseparáveis com quem formou o grupo Quatro Mineiros do Apocalipse que ainda vivia. Eram eles: o psicanalista Hélio Pellegrino (1924 a 1988), o jornalista Otto Lara Resende (1922 a 1992) e o poeta e cronista Paulo Mendes Campos (1922 a 1991). O escritor, cuja ausência já se faz saudade, via na amizade um sustentáculo de sua vida, inspirada não só na literatura como na reflexão constante sobre ética e moral impressa tanto em seus livros como nas cartas que trocava com os colegas. "Se arte é fazer justamente aquilo que a gente não é, então prefiro desistir de vir a ser artista", disse certa vez.

Comentava também ser um dos últimos exemplares de uma espécie em extinção, aquela que encontrou nas letras o melhor meio para tentar desvendar os mistérios da vida e morte. "O escritor é um ser solitário, que passa a vida exorcizando os seus demônios, sozinho diante de uma máquina de escrever, sem ter ao menos a distração de lidar com cores, como o pintor, ou com formas, como o escultor, ou com sons, como o músico. Só não está praticando um vício solitário porque, sendo um ato de amor, pressupões a existência de um outro, que vem a ser o leitor", disse a Hermes Nery, em entrevista ao Jornal da Tarde, em 10 de dezembro de 1988.

Para relembrar Fernando Sabino e, sobretudo, os tempos de formação de alguns dos mais importantes personagens da literatura brasileira do século 20, reunimos aqui a biografia e bibliografia do escritor e uma reportagem publicada quando ele completava 80 anos de idade. Ainda, uma série de matérias sobre as correspondências trocadas com seus colegas publicada em O Estado de São Paulo e uma crônica datada de 1988.

BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA DE UM EXÍMIO PROSADOR
 
Neto de italiano por parte de pai, Fernando Sabino nasce em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 12 de outubro de 1923. Aos 13 anos, escreve os primeiros contos. Cinco anos mais tarde, produz o suficiente para publicar seu primeiro volume de contos: Os Grilos não Cantam Mais (1941). Bem aceito pela crítica, o livro lhe rende uma carta de Mário de Andrade, com quem mantém correspondência. Incentivando o estreante, Mário escreve elogiando as qualidades do autor.

Em 1942, Fernando Sabino muda-se para o Rio de Janeiro como outros mineiros, como Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pelegrino. Na cidade, torna-se colaborador do Correio da Manhã e convive com Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Carlos Lacerda, Di Cavalcanti, Moacyr Werneck de Castro, Manuel Bandeira, Augusto Frederico Schmidt e Clarice Lispector, entre outros.

Um ano mais tarde, chama a atenção para o seu nome com a novela A Marca. Forma-se em Direito e, em 1948, muda-se novamente, mas desta em companhia de Vinícius de Moraes e para Nova Yorque, onde vive por dois anos. De lá, envia crônicas diárias para o Diário Carioca e O Jornal. Voltando da cidade americana, faz sucesso com um livro de crônicas, A Cidade Vazia. Em 1952, exercita sua técnica em novas experiências literárias ao lançar o primeiro livro de novelas inspiradas em emoções vividas durante o sono: A Vida Real. Começa a colaborar para a revista Manchete.

Com o romance Encontro Marcado, de 1956, o escritor conquista consagração nacional. Sucesso de crítica e de público, o livro foi publicado em diversos países, como Portugal, Alemanha, Holanda, Espanha e Inglaterra. Passa a escrever crônica diária para o Jornal do Brasil e mensal para a revista Senhor.

Em 1960, Sabino lança O Homem Nu, adaptado duas vezes para o cinema, a primeira com Paulo José no papel principal e a segunda com Cláudio Marzo como o protagonista. Em 1967 funda, com Rubem Braga, a Editora Sabiá, que será vendida para José Olympio em 1972. Em 1979, publica seu segundo romance, O Grande Mentecapto, a partir da experiência que teve como aspirante no Quartel de Cavalaria de Juiz de Fora. O livro é outro sucesso de crítica e público. Pela obra, Sabino é premiado com o Jabuti, em 1979.

Em 1991, lança o livro Zélia, Uma Paixão, uma biografia autorizada de Zélia Cardoso de Mello, ministra da Fazenda no governo Collor. Os escândalos de sua vida particular e a saída de Zélia do governo foram motivo de grande repercussão nacional, e o público não recebeu bem o livro. Em 2002 foi mais uma vez vencedor do Prêmio Jabuti, na categoria Contos e Crônicas por Livro aberto - Páginas soltas ao longo do tempo, de 2001.

Sabino vivia sozinho em seu apartamento na rua Canning, em Ipanema, desde que se separou da mulher, Lígia Marina de Moraes, em 1994. Na hora da morte, o escritor estava cercado por todos os filhos, Bernardo, Mariana, Verônica, Pedro, Leonora e Eliana, pelo neto Alexandre, filho de Virgínia, já falecida, pelo irmão Antônio e pelas secretárias, Fabiana e Isabel.

Os filhos revelaram que, antes do agravamento da doença, Sabino estava trabalhando, mas mantinha segredo sobre o projeto, que não revelava nem para sua editora, a Record. O último lançamento, Os Movimentos Simulados, foi escrito quando tinha apenas 22 anos e morava em Nova York, mas chegou às livrarias somente este ano.

Fernando Sabino insistia em um desejo: que não fossem lançadas obras póstumas. Por isso, em 2000 escreveu a autobiografia Livro Aberto e passou a organizar as cartas que enviou a amigos ilustres. Desta seleção, saiu o livro Cartas Perto do Coração, reunindo a correspondência com Clarice Lispector, Cartas na Mesa, com os amigos Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, e Cartas a um Jovem Escritor e suas Respostas, com Mário de Andrade.

BIBLIOGRAFIA


A Marca. 1944 / A Cidade Vazia, 1950 / A Vida Real, 1952 / O Encontro Marcado, 1956 / O Homem Nu, 1960 / A Mulher do Vizinho, 1962/ A Companheira de Viagem, 1965 / A Inglesa Deslumbrada - Crônicas e Histórias da Inglaterra e do Brasil, 1967 / Gente, 1975 / Deixa o Alfredo Falar!, 1976 / O Encontro das Águas, 1977 / O Grande Mentecapto, 1979 / A Falta Que Ela Me Faz, 1980 / O Menino no Espelho, 1982 / O Gato Sou Eu, 1983 / Macacos Me Mordam, conto em edição infantil, 1984 / A Vitória da Infância, 1984 / A Faca de Dois Gumes, 1985 / O Pintor Que Pintou o Sete, história infantil, 1987 / Os Melhores Contos, 1987 / As Melhores Histórias, 1987 / As Melhores Crônicas, 1987 / Martini Seco, 1987 / O Tabuleiro Das Damas, 1988 / De Cabeça Para Baixo, 1989 / A Volta por Cima, 1990 / Zélia, Uma Paixão, 1991 / O Bom Ladrão, 1992 / Aqui Estamos Todos Nus, 1993 / Os Restos Mortais, 1993 / A Nudez da Verdade, 1994 / Com a Graça de Deus, 1995 / O Outro Gume da Faca, 1996 / Um Corpo de Mulher, 1997 / O Homem Feito, 1998 / Amor de Capitu, 1998 / No Fim Dá Certo, 1998 / A Chave do Enigma, 1999 / O Galo Músico, 1999 / Cara ou Coroa?, 2000 / Duas Novelas de Amor, 2000 / Livro aberto - Páginas soltas ao longo do tempo, 2001 / Cartas Perto do Coração - correspondência com Clarice Lispector, 2001 / Cartas na mesa, correspondência com Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, 2002 / Os Caçadores de Mentira, 2003 / Os Movimentos Simulados, 2004

SABINO COMEMORA 80 ANOS E PREFERE NÃO MARCAR ENCONTROS

Aos amigos, o escritor Fernando Sabino disse que passaria o Domingo em Saquarema, praia do litoral fluminense. Prudente, prefere desfrutar a tranqüilidade do mar no dia em que completa 80 anos. Não quer homenagens ou comemorações.

A única lembrança da data ficará por conta de um anúncio de meia página em um jornal carioca, pago pela Record, editora que o publica desde 1975, com 31 títulos em catálogo. Os mais próximos, porém, acreditam que Sabino ficará em seu apartamento, no limiar de Ipanema, onde, nos últimos tempos, cultiva uma existência pacata. Um dos principais escritores brasileiros vivos, ele prefere conviver com as lembranças em silêncio, rodeado apenas de amigos e familiares.

Não se trata, porém, de um homem recluso - só não quer mais notoriedade.

Aos 80, Fernando Sabino ainda exibe uma vitalidade invejável para exercer diversas atividades. Em seu escritório, cuida diariamente da organização de seus textos, que resulta, por exemplo, nos volumes de correspondência: já foram publicadas as cartas que trocou com Clarice Lispector, Mário de Andrade e com os amigos com quem formou o grupo Quatro Mineiros do Apocalipse: Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos.

Apesar da presença do computador, Sabino prefere a máquina de escrever. A modernidade, portanto, é utilizada pela secretária, Fabiana, e principalmente pelo filho Pedro, a quem caberá o cuidado de sua obra "para a posteridade", como gosta de brincar - a pedido do filho, ele evita falar em morte. O escritor já decidiu que nenhum inédito será publicado postumamente, permanecendo como relíquia de família. Também os livros deverão estar constantemente em catálogo. O fôlego, porém, não terminou - Humberto Werneck de Castro, escritor e amigo, comentou, em uma entrevista, que Sabino escreve uma nova história. "E como mesmo personagem de O Encontro Marcado."

Sabino gosta de cultivar alguns hábitos antigos. Ainda envia, por exemplo, telegramas, apesar da velocidade da Internet. Na música, a paixão é pelo jazz, mas apenas os músicos da geração de ouro que não necessitavam da eletrificação dos instrumentos. Tem adoração pelo pianista Ralph Sutton e o saxofonista Bud Freeman, além das canções de Billy Strayhorn, o compositor amado por 11 entre 10 jazzófilos. "Existem gênios mais parecidos que Garrincha e Charlie Parker?", costuma indagar aos mais próximos, únicas testemunhas, aliás, de suas aventuras como baterista. Apesar de amador, Sabino sabe trabalhar com as escovinhas e se concentra profundamente no momento da execução, como observou um amigo há dois meses quando o escritor deu uma canja em um clube do Rio.

Autor de uma obra que figura entre as mais queridas do público, Sabino tem também o respeito dos colegas. "Quando comecei a me interessar por literatura, O Encontro Marcado já era uma referência obrigatória, um livro com ares de 'clássico moderno'", comenta Marçal Aquino. "Ele é um grande observador da fauna humana, que lhe serve de matriz para a criação de personagens impagáveis, sobre os quais lança um olhar de deliciosa cumplicidade."

Para Ignácio de Loyola Brandão, Fernando Sabino foi o ponto de transição entre a crônica antiga (Machado de Assis, José de Alencar, João do Rio) e a moderna. "Ele ajudou a modificar conceitos, a modernizar." De fato, suas crônicas na imprensa, carregadas de lirismo, permitiram traçar as fronteiras do gênero. E, com o romance O Encontro Marcado, publicado em 1956, Sabino lançou uma narrativa rápida, elétrica, certeira, para apresentar o retrato impecável de uma geração.

Seus livros sempre figuraram na lista de best-sellers, inspirados nas diversas fases da vida: a juventude em Minas, as viagens para outros países, a aventura ao lado de Rubem Braga como editor da Sabiá, a amizade com outros escritores. Em O Tabuleiro de Damas, Sabino relembra momentos saborosos, como uma resposta atravessada que recebeu de Fidel Castro, durante uma entrevista coletiva, e uma agressão por artigo recebida de Pablo Neruda. Os dois casos foram provocados por um mal-entendido, que o escritor conta com fina ironia.

Uma das mágoas na carreira aconteceu como livro Zélia, Uma Paixão, publicado em 1991, sobre a ministra da Economia de Fernando Collor de Mello. A má recepção obrigou- o a ficar em uma zona de silêncio. "Sabino sofreu muito preconceito e é hora de acabar com isso", proclama Loyola Brandão. "Uma besteira, uma intolerância injustificável."

O silêncio vem sendo quebrado com a divulgação das cartas que trocou com amigos, na expectativa de que, Aos 80 anos, uma nova fase da vida se inicie. Afinal, como escreveu em O Tabuleiro de Damas, aos 10 anos ele tomou uma decisão que, em geral, se toma aos 20: optou pela literatura. Aos 20, assumiu a responsabilidade dos 30: casou e foi viver longe dos pais e amigos. Aos 30 enfrentou a crise dos 40, quando a vida recomeça. Aos 40, nova mudança, para outra cidade. Com 50, fixou-se no Rio. Para Sabino, a vida é um eterno renascer.

CARTAS DE SABINO, AOS 18 ANOS, A MÁRIO DE ANDRADE

A casa número 546 da Rua Lopes Chaves, em São Paulo, era conhecida de todos os escritores brasileiros que viveram na primeira metade do século passado. Dali partiram inúmeras cartas datilografadas ou, na maior parte, escritas à mão com a letra miúda de Mário de Andrade, autor que manteve uma vasta correspondência com artistas, outros escritores e amigos em todo o País.

Em 1942, quando estava com 48 anos, Mário iniciou contato com um jovem mineiro de apenas 18, chamado Fernando Sabino. Foram apenas três anos de troca de confissões, mas com intensidade suficiente para determinar o rumo dos dois autores. Reunidas, as impressões formam o livro Cartas a um Jovem Escritor e Suas Respostas.

Fernando Sabino já editara, há dez anos, a correspondência recebida. No relançamento, teve a feliz idéia de acrescentar as cartas que firmou, estabelecendo de fato o diálogo. Com a nova edição, é possível agora acompanhar o denso relacionamento, iniciado com admiração recíproca, deteriorado por conta de um mal-entendido e finalmente restabelecido, antes da morte de Mário - a última carta, aliás, escrita por ele, é datada de 6 de janeiro de 1945, pouco mais de um mês antes de sua morte (25 de fevereiro).

A correspondência foi iniciada por Sabino: "Era a propósito do meu livro de estréia (Os Grilos não Cantam mais), do qual eu ousara enviar-lhe um exemplar e que ele havia lido quase por acaso, numa noite de lazer", explica, no prefácio da edição. "Naquele tempo, ser escritor era ser artista. Eu lhe confiava as minhas dúvidas e preocupações literárias com o ardor dos que querem vencer a todo custo: o problema da sinceridade do artista, a importância ou desimportância do sucesso, a necessidade de escrever e ao mesmo tempo ganhar a vida, o aprimoramento do estilo, a opção entre a arte social e a arte pela arte, e outros temas em moda na época."

Generoso, Mário interessou-se pelo jovem desconhecido e enviou-lhe uma extensa resposta, com a data de 10 de janeiro de 1942, recheada de conselhos. A começar pela assinatura do novo autor: "Se você quiser continuar sendo escritor, antes de mais nada tem que encurtar o nome. Tavares Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino. O que é impossível é Fernando Tavares Sabino."

Em seguida, Mário analisa os contos enviados, observando-os como "leves e delicadas transposições líricas da vida", mas faz uma importante ressalva: "Se você não fizer coisas maravilhosamente bem-feitas como técnica, como estilo, como arte de escrever, como bom gosto espiritual, você será apenas 'mais' um."

A diferença de idade permite se estabelecer logo uma discussão tanto sobre questões artísticas como pessoais. Com o jovem Sabino na iminência de servir o Exército e tomado por uma paixão prestes a se transformar em casamento, Mário faz questão de abrir-lhe os olhos para o que julga ser um momento feliz. "Você não (deve) perder jamais a consciência de que a sua experiência de felicidade deve ser também um objeto de aprimoramento pessoal", escreve o autor de Macunaíma, que acrescenta: "Não se deixe desleixadamente viver como a maioria infinita dos nossos artistas brasileiros. Como eles são pobres de humanidade! São macunaimáticos, se dissolvem nos seus 'atos', sem realizarem uma 'ação', que é continuidade. Não são homens, são água."

Mário tocara em um ponto sensível - escritor iniciante, Sabino responde com uma série de inquietações, buscando na experiência do amigo o caminho para sua obra. A ponto de sua resposta vir carregada de indagações: "A arte é mais bela e perfeita quanto mais feia e imperfeita for a vida do artista? Ou paira acima e independente, dominando a vida e não sendo dominada por ela?" Mário rebate, incisivo: "Isso é provérbio, é simplório por demais. A arte jamais é independente da vida: há interdependência insolúvel e irrecorrível, que faz com que nem a vida domine a arte nem esta àquela." Era o início das lições do novo amigo.

A correspondência entre Mário de Andrade e Fernando Sabino seguia como uma segura troca de impressões artísticas quando o escritor mineiro foi tomado por uma questão crucial: "O casamento em perspectiva, sendo eu tão jovem, não seria fatal para a minha vocação de escritor?", questiona Sabino, na introdução do livro.

Nas respostas, Mário apóia sua união com uma jovem chamada Helena, mas alerta-o sempre para a missão do artista em sua busca sacrificante de produzir uma obra de arte, que só vem com muito sofrimento, fadiga, decepção. A questão, porém, assume um segundo plano quando acontece um mal-entendido - Sabino convidara pessoalmente o amigo escritor para padrinho, que aceitou.

Ele não sabia, no entanto, que o futuro sogro, governador de Minas Gerais, já tinha feito o convite para o então presidente da República, Getúlio Vargas. "Não haveria melhor desagravo, para o homem independente que eu pretendia vir a ser, em contrapartida ter como meu padrinho Mário de Andrade, sabidamente um dos maiores adversários do ditador."

O mal-estar prosseguiu quando Mário, em carta escrita a 23 de maio de 1944, desistiu de ser testemunha no casamento, primeiro alegando falta de lugar no avião que o levaria a Minas; depois, justificando que sua presença não satisfaria algumas pessoas. "Para que insistir num mal-estar?", questiona.

A atitude magoou Sabino. "Guardei comigo a decepção, mas me retraí. Até que, ao tomar conhecimento de uma queixa sua a um amigo, em termos ferinos, provocou o estouro: despejei numa carta toda a minha mágoa ante o que me parecera uma deserção", comenta o escritor. Em seu texto, Sabino não conseguiu esconder sua tristeza. "Na hora que li a sua carta recusando o convite, se esquivando, meu sentimento não foi de revolta, mas de melancolia. Decidi então adotar com você todos os bons princípios de uma amizade convencional e bem-comportada", escreveu.

A resposta não foi menos dolorosa: "Há nesta Rua Lopes Chaves um ridículo homem que chegou à convicção que neste momento culminante da vida, toda arte é pueril, todo indivíduo que não se sacrificar totalmente pela vida coletiva humana é um canalha, é um vendido, é um canalha. Há um homem que chegou à convicção de que só é possível lutar, e só é preciso matar ou morrer." Mário atentava para a diferença de idade que os separava e para a importância que sua obra e palavras assumia para todos os jovens escritores brasileiros. Portanto, não era possível haver condescendência.

Sensibilizado, Sabino veio a São Paulo, onde os escritores celebraram a paz. E, depois de um longo intervalo, voltaram a se corresponder. Durante os três anos de comunicação escrita, Mário despontou como importante orientador do jovem autor mineiro, carregado de contradições. E, na penúltima carta, escrita pouco antes de sua morte, Mário encerrava com palavras dramáticas e premonitórias: "Não se arrependa e não me poupe nunca - é o melhor jeito de me deixar leal para comigo. Estou destroçado. É um abatimento de mim; provocado por sua carta, mas causado por mim. Este esgotamento preventivo que dão as fatalidades que a gente não pode mudar." A última vez que se viram foi à saída de um bar na Avenida São João, depois uma rodada de chope com vários escritores comuns, em fevereiro de 1945.

TRECHOS

De Mário para Fernando
É certo que o artista não deve ter pressa, é preciso saber esperar. Mas isso do sujeito que só se põe escrevendo "quando sente disposição" é estupidez mas da miúda. Principalmente para o prosador. De fato o poeta só deve criar quando em "estado de poesia". Mas isso não é sentir disposição, já é estar fatalizado por uma impulsão interior de que ele não tem culpa. O prosador não. O prosador lida com a inteligência lógica, está no plano do consciente, das relações de causa e efeito. O seu discurso tem cabeça, tronco e membros, princípio-meio-e-fim, embora pouco importe que muitas vezes o assunto exija que o fim esteja no princípio, e princípio no meio. Não tem disposição? Não se trata de ter disposição: você é um operário como qualquer outro: se trata de ter horas de trabalho. Então, vá escrevendo, vá trabalhando sem disposição mesmo. A coisa principia difícil, você hesita, escreve besteira, não faz mal. De repente você percebe que, correntemente ou penosamente (isso depende da pessoa) você está dizendo coisas acertadas, inventando belezas, forças etc. Depois, então, no trabalho de polimento, você cortará o que não presta, descobrirá coisas pra encher os vazios etc. etc. Não há como a fatura de um filme pra exemplificar bem o trabalho de todo e qualquer artista. São cortes e mais cortes, novos close-up a fazer, tanto preparo anterior, tanto trabalho posterior, coisa lenta, difícil, penosa. (S. Paulo, 25-1-42)

De Fernando para Mário
(Eu) me refaço da ilusão de ter literariamente me revestido da importância de 35 anos. Para iludir os outros - inclusive você. De ter largado os meus contos, honestos, sinceros, meus, que me levariam devagar, mas levariam, para me meter prematuramente numa experiência literária, que, se me valeria apenas como um treino, um afiar de instrumento, poderia também ter me levado inconscientemente para o terreno quem sabe da mistificação mais completa, sem que eu pretendesse (como o Lúcio Cardoso, que afinal tem ao menos o mérito de achar que está certo). Você duvida da minha evolução literária, por causa da "ganância estética". Meu Deus! Eu também duvidaria, se continuasse acreditando em você, no seu conceito de arte. Vamos ser práticos: se arte é fazer justamente aquilo que a gente não é, então prefiro desistir de vir a ser artista. Pode ficar certo, Mário, que não me atemoriza saber também que "se Cristo quiser agir, ele matará o artista em mim". Porque eu não quero com o Cristo me engrandecer artisticamente, mas justamente me perder em Cristo, como você prevê. Não me desculpo no Cristo: não sou católico do tom maior, do heroísmo, cavalgando sinos, empunhando a Cruz à frente das multidões em marcha, querendo impor pela força aquilo que devia se ensinar pela humildade. A fé em mim não foi uma vitória. É uma fé que eu trago em mim desde a infância, e vem resistindo, eu mesmo não sei por quê. Poderia hoje ser apenas mais um de meus preconceitos burgueses, pela comodidade de ter com que me justificar. Uma salvaguarda, como disse você. Não será mais. Porque eu não a descobri, descobri apenas a necessidade de ser fiel a ela. Esta fidelidade eu escondia, fazendo dela "segredo de alcova", porque não lutei para preservá-la. Para isso é preciso ser coerente comigo mesmo, não me trair mais, fazendo da Literatura apenas um jogo hábil para merecer os aplausos da crítica. (Rio, 11/12/44)

AS CORRESPONDÊNCIAS COM CAMPOS, HÉLIO E OTTO

Certa madrugada dos anos 60, o paisagista Burle Marx disparou a berrar na rua o nome de amigos que avistava naquele momento, em um bar de Copacabana: "Fernando Sabino! Otto Lara Resende! Paulo Mendes Campos! Hélio Pellegrino!" Quando os quatro se voltaram, ele continuou: "Que coisa antiga! A essa hora da noite! Que é que vocês ainda têm para conversar? Vão para casa, gente!"

O encontro, que não era marcado, foi lembrado com graça por Sabino no momento em que preparava a edição de seu mais recente livro, Cartas na Mesa. Trata-se da seleção de 134 cartas enviadas por ele aos três companheiros, entre 1943 e 1992.

Juntos ou a distância, construíram uma amizade fraterna e se consolidaram como um quarteto que se completava visceralmente: Otto Lara Resende era o fabulador melancólico; Pellegrino, o psicanalista exaltado; Campos, o poeta tímido; e Sabino, o cronista delicado. De suas estripulias pelas ruas da juventude, surgiram histórias que, contadas tanto de forma irregular como com boa dose de ousadia, conquistaram um importante lugar na literatura brasileira do século passado.

Importante porque sintetizou de uma certa forma os impasses dessa literatura, em que o moderno e o passado convivem harmoniosamente e em que a ousadia se debate com uma religiosidade mal resolvida ou, como disse uma vez Hélio Pellegrino, um "conflito harmonioso".

"Discutíamos tudo, não importava o tema: da Nova República à Assunção de Nossa Senhora", conta Sabino, no prefácio do livro. "Discussões tão acaloradas que mais de uma vez aconteceu de trocarmos de lado só para continuar a discutir." E, entre frivolidades, conversavam também sobre os rumos literários de cada um. "Éramos sempre implacáveis, por exemplo, no julgamento da produção de cada um. E acredito que esse rigor crítico nos foi extremamente valioso: impediu que a gente escrevesse muita bobagem."

O livro se abre com uma bela carta-poema escrita por Pellegrino em 1945, texto poético que traz reminiscências da juventude vivida por eles. E a primeira carta é também dirigida ao psicanalista - Pellegrino e Sabino iniciaram a amizade ainda criança, ambos com 6 anos, no jardim da infância. Mesmo seguindo carreiras distintas (Medicina o primeiro, e o outro Direito), mantiveram uma estreita ligação.

Com Otto Lara Resende, o primeiro encontro já foi na adolescência, na casa de um amigo comum. "Ele me revelaria mais tarde que ficou impressionado comigo porque eu conhecia marcas de automóvel, era campeão de natação e só falava futilidades", relembra Sabino, que conheceu Paulo Mendes Campos na varanda da casa de um cônsul inglês, durante uma festa em que ambos tinham entrado de penetra: interessados pela mesma menina, terminaram com uma discussão sobre literatura.

Sabino já publicara pela Record a correspondência que trocou com Mário de Andrade (Cartas a um Jovem Escritor) e Clarice Lispector (Cartas Perto do Coração) e, assim como as enviadas aos três amigos mineiros, revela elementos que se repetem: insegurança, dúvidas, auto-recriminação, abatimento, suspeita.

Apesar de festejado pelo público e pela crítica, Fernando Sabino caminhava com relutância, indeciso quanto ao rumo que pretendia para suas obras. "Meu livro, Otto, oh! desgraça que está sendo meu livro que acabei pela quinta vez! E agora vou ter de começar de novo, porque descobri que estava tudo errado e muito possivelmente o que eu acabei foi apenas a primeira parte", lamenta-se em carta escrita para Resende, em 1945.

É para ele e principalmente Pellegrino, aliás, que Sabino mais escreveu, principalmente por receber resposta com mais regularidade - a Paulo Mendes Campos reclama constantemente do silêncio e acha graça com a justificativa do amigo, que alega ter sua caneta surrupiada pelo próprio Sabino.

Além de estimular discussões sobre o rumo da obra de cada um, as cartas serviam também para troca de informações políticas, em uma época em que as notícias corriam vagarosamente.

Em 1945, por exemplo, Sabino comentava, desaforado, a Resende, os problemas que marcavam o fim da ditadura de Getúlio Vargas. "Os liberais estão safados, desorientados, sem força, muito embora a chegada barulhenta do Octavio Mangabeira", escreveu, do Rio. "Ainda anteontem no Diário Carioca o Carlos Lacerda meteu o pau em pedetistas e oposicionistas, você leu? O pior é que ele não deixa de ter razão, é aquilo mesmo. O DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda do governo) vai irradiar o discurso do (Luís Carlos) Prestes, veja você. O DIP está funcionando aqui, e esse povo não percebe. Uma desgraça”.

O assunto retornou em 1964, quando Sabino acompanhou os momentos da revolução de 31 de março desde Londres, onde exercia o cargo de adido cultural na embaixada brasileira. Em carta a Resende, revela suas preocupações: "E a crise aí? Não penso noutra coisa: saí na hora H? As bombas estouraram atrás de mim? Prenderam todo mundo? Já tem censura? Corro perigo de escrever besteiras, eu, católico, apostólico, romano, que abomino os comunistas, suspeito do lacerdismo, atacado pela matilha de UH (o jornal 'Última Hora')”.

Escritas durante quase 50 anos, as cartas que pareceram ser uma troca de confissões foram, na verdade, a manifestação de uma sólida e fecunda cumplicidade.

SÃO 50 ANOS DE 'CONFLITO HARMONIOSO'

O livro se encerra com a reprodução de uma descontraída entrevista que os quatro concederam a Narceu de Almeida Filho, para a revista Ele e Ela, em 1979. Apropriamente intitulada Os Quatro Mineiros do Apocalipse, a entrevista revela mais detalhes da cumplicidade que os unia.

Sobre a geração de escritores mineiros, por exemplo, que precedeu a deles e era formada por, entre outros, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. "Não houve rompimento entre nós e a geração anterior", comenta Sabino. "Nós nos demos muito bem com essa gente, com o pessoal da Semana de Arte Moderna de 1922, mas, nos acadêmicos, baixávamos o sarrafo”.

Apesar de se confessarem eternos moleques, os quatro escritores analisam com seriedade os sonhos literários de cada um e, principalmente, suas possibilidade. "Nós vivíamos em sustenido e em tom maior", afirma Pellegrino. "Claro que a gente se desiludiu. Aliás, saudabilissimamente, porque ninguém suportaria manter aquela idealidade, aquela importância que nós mesmos nos dávamos. Nós nos curamos”.

Eles reconhecem ainda a necessidade do olhar crítico de cada um no trabalho individual. Pellegrino ironiza, dizendo que eles se davam muita importância e, ao mesmo tempo, não se davam nenhuma importância. "O papel que exercemos uns com os outros foi implacável, em matéria de censura, de gozação, de crítica", completa Sabino.

É curioso, nesse momento da entrevista, a amarga avaliação que Paulo Mendes Campos faz da própria obra. Indagado sobre o que conseguiu realizar de suas ambições, ele responde de forma implacável: "Quanto a mim, um fracasso perfeito, arrumadinho", afirma. "A minha intensa pretensão era a de escrever um livro de não mais que, digamos, 80 páginas. Passei a vida escrevendo e, se juntar hoje todas as besteiras que escrevi, dariam vários volumes da Plêiade. A minha imensa ambição foi reduzida à expressão mais simples: a do imenso volume que tive de escrever para sobreviver. Mas não me arrependo desse esfacelamento da minha ambição”.

Já Hélio Pellegrino, psicanalista, poeta e militante de esquerda, revela-se prático: "Viver saudavelmente é desiludir-se. A gente tem de se curar dessa imagem exaltada que de início se tem de si próprio. Assim, na verdade a gente sempre fracassa. Tenho certeza de que qualquer vida humana é fracasso”.E continua: "Eu me considero hoje um sujeito mais feliz do que quando tinha 20 anos, porque me curei. Eu tive uma luta muito grande comigo mesmo”.

A cobrança também acompanhou a carreira de Otto Lara Resende, que, ao contrário de Pellegrino, confessa não ter se livrado do que foi aos 20 anos. "Sou uma pessoa desgostosa de ser quem eu sou", afirma. "Sou um sujeito profundamente deprimido e, parodiando o Fernando Sabino, 'não sou meu tipo'“.O escritor revela-se também descrente com seu ofício, sentindo-se desmotivado para expressar literariamente seus sentimentos. "Sei que não está aí minha salvação, sei que sou um homem perdido”.

Menos amargurado de todos, Sabino conta como aprimora seu estilo ao escrever crônicas que, à época, eram publicadas em mais de 50 jornais. Atingir um público mais amplo que o servido pelos livros e com tanta rapidez deixava-o feliz. "Não pretendo praticar uma literatura só para mim, e só para uma meia dúzia, e sim para o maior número possível de pessoas”.

É dele, aliás, a obra em que os amigos aparecem juntos pela primeira vez, no célebre romance O Encontro Marcado, de 1956, no qual Pellegrino está escondido sob o personagem de Mauro Lombardi - um rapaz que alguém define, em dado momento do livro, como "um barítono de banheiro".

A entrevista finaliza com depoimentos de cada um sobre suas expectativas. Falante contumaz, Hélio Pellegrino toma a palavra para pregar: "A gente tem de ser muito comedido, muito moderado, sem onipotência, sem voluntarismo, certo de que o convívio humana é uma construção, uma graça”.

A sua tenacidade é seguida da visão melancólica de Paulo Mendes Campos, que já se preocupava com os efeitos da devastação da natureza no futuro do ser humano. "Ao mesmo tempo em que há esperança, corre-se um grande perigo", alerta.

Sereno, Otto Lara Resende revela-se apenas um observador, descompromissando-se com o futuro. "A minha experiência é de tal maneira depressiva, há uma distância tão grande entre o que eu desejo e o que de fato é, que eu só posso ser otimista", comenta.

E Fernando Sabino encerra a conversa com um discurso otimista, cristalizando a opinião dos demais. "Tenho consciência da fragilidade humana", afirma. "E é exatamente nessa fragilidade que está para mim a semente da salvação humana”.

CARTAS PERTO DO CORAÇÃO

Enquanto Sabino lutava para escrever, e escrevia seu célebre romance O Encontro Marcado, Clarice enfrentava seus primeiros livros, entre eles A Maçã no Escuro. Para além das curiosidades biográficas, que não são muitas já que os dois se tratam sempre de modo informal, mas discreto, a correspondência serve, sobretudo, como um instrumento de acesso aos tempos de formação de dois dos mais importantes escritores brasileiros do século 20.

Insegurança, dúvidas, auto-recriminação, abatimento, suspeita são alguns dos elementos que se repetem, às vezes com intensidade atroz - e o leitor de hoje ficará se perguntando como, apesar de tanta turbulência, eles conseguiram levar seus projetos a termo.

Depois de ler uma crítica nada favorável de Álvaro Lins, que classifica seus primeiros romances de "mutilados e incompletos", Clarice, apreensiva, escrevendo para Fernando, se purga: "Tudo o que ele diz é verdade. Não se pode fazer arte só porque se tem um temperamento infeliz e doidinho”.Na carta seguinte, Fernando a consola: "Digo apenas que não concordo com você. (...) Já te disse que você avançou na frente de todos nós”.Quanto a Lins, Sabino não mede as palavras: "Álvaro Lins é um cretino”.Alguns parágrafos antes, o escritor se punha a meditar sobre a insegurança que atormenta a ambos, buscando uma explicação que inclua a literatura: "A gente se angustia é por não saber intimamente o que está fazendo”.

Em nova carta, Clarice continua a desabafar: "Não trabalho mais, Fernando. Passo os dias procurando enganar minha angústia e procurando não fazer horror a mim mesma”.Ela se sente presa no que chama de "vida íntima, a um ponto de não ter nenhum sinal exterior". A solidão, o isolamento, a incomunicabilidade são elementos que perpassarão toda a obra de Clarice. "Interrompi mesmo o trabalho, minha impressão é de que é para sempre", afirma. Em sua resposta, Sabino tenta consolá-la: "A arte não nos satisfaz porque não passa disso: é o testemunho de nós mesmos”.E diz que é horrível ver a amiga presa "num círculo de giz".

Numa carta seguinte, Clarice volta a ser muito rude consigo: "Estou vendo que não disse nada, que não é nada disso, e estou vendo que estou bastante perdidinha”.Naquele momento, cheia de dúvidas, ela trabalha em seu famoso conto O Crime do Professor de Matemática. "Estou sempre errando", tortura-se. Na carta seguinte, fazendo coro com as lamentações de Clarice, é a vez de Fernando Sabino dizer: "Tudo o que tenho feito cada vez corresponde menos ao que eu queria fazer”.Vivendo em Nova York, a solidão agrava a imagem negativa que o escritor tem de si. "Fernando Sabino é realmente um ser de comovente estupidez: no Brasil, tinha casa, amigos, emprego melhor, automóvel (se bem que...), chope no Alcazar...", escreve.

Meditando sobre a angústia, em outra carta, Clarice conclui: "A explicação é que me falta realidade”.Confessa que está rascunhando uma tragédia, ao estilo da Idade Média e, solene, se admoesta: "Em verdade vos digo, é uma coisa horrível. Mas tive tanta vontade de fazer que fiz contra mim”.Comentando a confidência da amiga, Fernando Sabino sugere: "Desconfio que será uma trilogia, nem trágica nem triste, mas certa, exata e indispensável como são esses livros que a gente escreve para desmoralizar nossa própria necessidade de escrever”.E, num esforço para quebrar a tensão, fala de um projeto, a que chama de Aprendiz de Feiticeiro, no qual esboça uma divertida e debochada classificação dos escritores. Diagnostica a existência, por exemplo, dos "que começam e acabam" (José Lins do Rego), "os que acabam e não começam" (Cyro dos Anjos), "os que começam mas não acabam" (Otávio de Faria) e "os que nem começam e nem acabam" (Lúcio Cardoso). E assim alivia a própria aflição.

Vivendo em Berna, onde seu marido, Maury Gurgel Valente, exerce cargo diplomático, Clarice tem a chance de viajar pela Europa. De volta de uma visita à França, escreve: "Tive um verdadeiro cansaço em Paris de gente inteligente. Não se pode ir a um teatro sem precisar dizer se gostou ou não, e porque sim e porque não”.Depois de ler os diários do escritor francês Julien Green, ela comenta: "Em muita coisa me sinto tão parecida com ele (...) e, ao mesmo tempo em que me dá uma sensação muito boa de comunicação, me dá uma sensação intolerável de prisão, como cada vez que sou compreendida”.Já instalado novamente no Rio de Janeiro, Sabino compartilha com a amiga esse sentimento e manifesta sua repulsa aos conselhos dados por outros escritores: "Gide aconselhou que a gente começasse a escrever uma frase sem saber como iria acabá-la, para maior vivacidade do estilo: fui seguir o conselho e hoje em dia sempre que começo uma frase acabo não sabendo mesmo como deve ser terminada", confessa.

Já vivendo agora em Washington, para onde o marido foi transferido, Clarice fala de suas dificuldades para aderir ao american way of life. E descreve assim o estado de introspecção em que a distância a meteu: "Passo o tempo todo pensando - não raciocinando, não meditando - mas pensando, pensando sem parar. E aprendendo, não sei o quê, mas aprendendo." Em sua resposta, Fernando Sabino descreve um estado de melancolia muito parecido: "Estou ficando vago, e ultimamente ando cada vez mais tolerante com a vagueado das palavras." Cada um em seu estilo, descreve um mesmo desalento, que se intensifica nos intervalos da criação.

Depois de ler os originais dos contos de Clarice que viriam a compor A Imitação da Rosa, Sabino, deslumbrado com o que leu, mas sem dissimular a inveja, diz: "A primeira sensação foi de desânimo. Ora, eis que estou empenhado em escrever um romance importantíssimo para mim, mas impiedosamente limitado como realização artística e - o que é pior - desgraçadamente penoso de ser escrito. E me vem você com esses contos, dizendo, como quem não quer nada, tudo aquilo que eu pretendia dizer um dia." E, para que se veja que a competição não afeta sua amizade, tempos depois Fernando Sabino se empenhará, com esmero, em ajudar Clarice na releitura dos originais de A Maçã no Escuro - que ainda se chamava, a essa altura, A Veia no Pulso.

Nas cartas que trocam a respeito, cheio de cuidados, ele elabora numa longa lista de sugestões de mudanças, que ocupam 29 páginas da correspondência entre os dois. Clarice, desanimada, esforça-se para seguir os conselhos do amigo. "Comecei a revê-lo. (...) Não sei como você teve paciência com ele. Estou com pouca, ele é descosido, e tão mal escrito que muitas vezes não dá jeito de consertar", recrimina-se. Ao receber a versão corrigida do romance, é a vez de Sabino se lamuriar: "Fiquei encabulado de ver que você seguiu ao pé da letra demais as minhas sugestões", diz.

Tempos depois, lendo os originais de O Encontro Marcado, de Sabino, uma perplexa Clarice admite: "Perguntei-me de início aonde você pretendia levar o leitor e me levar." Mas se pergunta ainda: "O fato de você ter escrito este livro e eu ter escrito o meu, não é o começo da maturidade?" Fernando Sabino responde: "Você pode calcular o que representa este livro para mim, como 'purgação''- motivo evidente de ordem extraliterária, mas necessário para que eu me sinta daqui por diante capaz de escrever sobre o que quiser."

Apesar da intimidade cada vez maior, os dois estão sempre cheios de cuidados. "Eu devo ter me exprimido mal quando disse que preferia não ter sido você a pessoa capaz de escrever esse livro", penitencia-se Clarice numa carta posterior. "O que eu queria exatamente dizer é que o livro é doloroso, o livro dói, e eu queria que você não tivesse sido a pessoa que sentiu tudo o que sentiu." Afastada essa dúvida, Clarice pode dizer: "Só posso lhe dizer uma coisa, Fernando: o livro que você escreveu pareceu me libertar mais do que o livro que eu própria escrevi." O que pode parecer só uma troca de frívolas gentilezas é, na verdade, a manifestação de uma sólida e fecunda cumplicidade.

TRECHOS

De Clarice para Sabino
Fernando estou tentando terrivelmente escrever uma carta de notícias mas não consigo mesmo. No dia em que eu conseguir escrever uma carta de notícias talvez possa escrever uma história com um verdadeiro enredo. Leram minha mão e disseram que não sou muito feliz. Que coisa. Muitas coisas não quiseram me dizer e é isso que está me incomodando. Disseram também que sou uma pessoa muito controlada. (Clarice Lispector, Berna, 8 de fevereiro de 1947)

De Sabino para Clarice
Clarice, ora, seu livro, da primeira à última linha, não é outra coisa senão alguém escrevendo um livro - e isso devido à sua concepção peculiaríssima, à técnica que você adotou, etc - nunca porque você o diga a toda hora. O importante não é dizer, é saber. Certas coisas não se dizem, porque dizendo, deixam de ser ditas pelo não-dizer, que diz muito mais. (Fernando Sabino, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1956) - apresentados uns aos outros por Rubens Braga.

ENTRE DOIS AMORES, MELHOR FICAR O DITO PELO NÃO DITO

Era uma voz angustiada que o chamava lá embaixo , na rua, tirando-o do sono. Acendeu a luz, olhou o relógio: uma hora da madrugada.

- Você está sentindo alguma coisa? - a mulher voltou-se na cama, estremunhada.

- Estão me chamando lá na rua. Acho que é o Gil. Foi até a janela. Era o Gil, acenando-lhe freneticamente da calçada.

- Joga a chave!

Jogou a chave dentro de um maço de cigarros vazio. Depois vestiu o roupão e foi esperar na sala. Em pouco o Gil irrompia apartamento adentro, esbaforido:

- Entrei numa fria do diabo. Pelo amor de Deus, me ajuda a sair dessa.

- Matou alguém? - disse o advogado, já alerta par as atenuantes. Só que não militava no crime, apenas no cível.

- Estou perdido - gemeu o Gil, sem ouvir - Me arranja pelo menos um troço para beber. Aceitou um conhaque e contou então a sua história. A mulher tinha ido fazer uma estação de águas em Poços de Caldas e levara as crianças. Aproveitou a folga para dar uma bordejada por aí, repassar um velho caso... Pois, naquela noite vinha muito fagueiro em companhia do velho caso quando o carro, também velho, ao entrar na praia de Botafogo, derrapou e bateu de cheio noutro carro. Gritos, confusão, desespero:

- Minha amiga não teve nada, só o susto. Meti a desgraçada num táxi para que ela se mandasse dali, fosse para o diabo. Eu também não tive nada, a não ser uma pancada no joelho, que posso contar Ter sido no futebol de praia. Mas o outro carro! Ficou lá arrebentado. A impressão que tenho é que quem estava lá dentro vai ter de ser enterrado com carro e tudo. Como cheguei até aqui, só Deus sabe.

- Calma que tudo se arranja. Você não devia ter fugido, ma agora não interessa. O jeito é a gente ir até lá para ver o que houve.

Avisou a mulher, enquanto se vestia.

- O Gil se meteu numa fria. Sofreu um acidente.

Isso tudo foi combinado, pensava a mulher: esses dois vão pra farra. No local do desastre deram com os dois carros meio destroçados, em meio a pequeno grupo de curiosos. Nenhum ferido, nenhum cadáver pudera, observar à distância. A menos que já tivessem sido removidos.

- Conheço o comissário deste distrito. Vamos lá para ajeitar as coisas. Na delegacia os dois passaram por um senhor agitado, enraivecido, andando de um lado para o outro. O comissário informou-lhes que tomara conhecimento do desastre. E olhava para o Gil, penalizado.

- Então foi o senhor, é? Esse homem que vocês viram aí fora é o dono do outro carro. Está uma fera. O carro dele virou farinha. E o pior é que ele é coronel, parece. Daí pra cima. Disse que não sai daqui enquanto não resolver o caso. Como não houve vítimas...

- Não houve vítimas! - os dois respiraram, aliviados, embora pairasse no ar, ameaçadora, a patente militar mencionada. Antes que perguntassem o que estava pretendendo o coronel, este irrompeu na sala:

- Como é, comissário? O senhor não vai fazer nada? Não vai tomar nenhuma providência? Quem é esse homem? O carro é dele?

- O carro é aqui do meu amigo - interveio o advogado, conciliador. - Sou advogado dele. O senhor tenha calma, coronel, não precisa se exaltar, que tudo se arranja. Graças a Deus só houve danos materiais.

- Danos materiais? - e o coronel arregalava os olhos, fora de si, muito além da compreensão.

- Tenha calma, coronel. Com calma tudo se resolve. Talvez a gente possa chegar a um acordo.

- O quê? - balbuciou o coronel, tão transtornado que o outro, precavido, deu um pulo para trás:

- Acordo? O senhor falou em acordo?

E respirou fundo, erguendo os braços dramaticamente:

- Acordo! Meu Deus, há duas horas estou esperando ouvir esta palavra bendita! Tomou o advogado pelo braço com a maior familiaridade e o levou a um canto, para lhe explicar a situação. Servia numa unidade em São Paulo. Tivera de vir ao Rio a serviço, apenas por um dia, e fizera crer à mulher que viera de ônibus - ele tinha horror de avião, assim ficaria tranqüila.

- E vim de carro, porque resolvi trazer uma velha amiga... O senhor compreende, não? Felizmente ela não sofreu nada. Ninguém sofreu nada, e não se sabe de quem foi a culpa, de modo que um acordo... Se por acaso minha mulher... Meu Deus, o senhor não conhece minha mulher. Faço qualquer acordo! Qualquer acordo! Como no verso de Bandeira, só falta o coronel apoplético, sair gritando: je vois des anges! Je vois des anges! O advogado lhe disse mais uma vez que não precisava se exaltar, estava tudo resolvido

- O acordo está feito. Uma mão lava a outra.

O coronel deixou escapar sua satisfação num sorriso:

- Isso mesmo.

- Fica o dito por não dito - insistiu o outro.

- O dito pelo não dito. Dito e feito! Ou, melhor dizendo - e o coronel piscou um olho, - elas por elas.

(O Estado de São Paulo – 13/10/2004)

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