terça-feira, 11 de outubro de 2011

Epiphânio Camillo - Rumo ao inconnu

PARIS, MOSCOU, SÃO PETERSBURGO
 
Premier - 10/09, Samedi

“...coisa que gosto é poder partir sem ter planos, melhor ainda é poder voltar quando quero...“ (Fernando Brant)

Shazam! Lá vou eu novamente.

No ecouter, a bordo, Chet Baker sings. “There Will Never Be Another You.” Avisto o horizonte a mais de 30.000 pés: profusa mistura de cores fortes marcando na semipenumbra o fim da tarde e o início de nova noite à qual seguirá outro dia e outra tarde e outra noite e outro dia e... “Time After Time.” O pensamento sempre voa, mas agora flana junto com o corpo. “But Not For Me”, responde Chet.

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

Deuxième - 11/09, Dimanche

Ainda a bordo desperto com o brilho da plena Lua em meus olhos. Como nunca visto. Ela a mesma. Sempre. Eu, não! Sempre. “À bientôt la Lune” foi a manchete premonitória de um jornal francês quando o primeiro homem decolou de volta da fantástica viagem.

E eis Paris mais uma vez. Uma festa, definiu Hemingway. Chuva fina. Tempo de molhar. Quem está na chuva...

Taxiii! Taxiii! La direción? Huitième, s'il vous plaît!

No pequeno studiô o passado. Bem conservado. Prédio cinzento na Rue que homenageia o grande Honoré. De Balzac. No momento soa como metáfora. Ascenseur em madeira trabalhada, minúsculo, lento, estridente, porta pantográfica. Uma graça, um charme, um desconforto! Allez, allez! Vite, vite!

Douce France, le pays de mon enfance...”

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

Troisième - 12/09, Lundi

Gare Saint Lazare, Vernon, Giverny. Monet.

Nas obras de linhas e cores difusas manifesta-se a essência das paisagens. O óbvio não é tão belo! É preciso enxergar além das evidências, principalmente quando acometido de catarata. Lembrei-me de Tia Aurora: “Está tudo aí; Zé; é só procurar.” Ela conhecia Monet?

Diz Claude: “Ce que je ferai, ce sera l'impression de ce que j'aurai ressenti.

Na imagem de hoje, “Soleil Lévant.”

Dans la nuit, Monet & Chandon. À demain.

Quatrième - 13/09, Mardi

Dia de pagar promessa que fiz a mim mesmo. Metrô George V, Denfert-Rocherreau, RER B, Arcueil-Cachan, Bagneux.

Depois de muitos anos retorno a Cachan. Emocionante volta a 1974 e 1981. Bom rever as Rues, as Places, os passeios bem cuidados por onde andei muitas vezes, as casas de muros baixos, o silêncio do bairro residencial apenas perturbado por algazarras ao longe de crianças da escola fundamental. Para parecer com minha Pitangui dos anos 40 e 50 faltou o som plangente das rodas de carros-de-bois. Tudo o mesmo como se não houvesse decorridos 37, 30 anos!

No Pavillon d’ACTIM até as heras que cobrem as laterais do prédio onde morei pareciam não haver sido nem mesmo podadas. O portão, as grades azuis de proteção ao longo da Avenue du President Wilson, o gramado, os Álamos, o tráfego raro, os veículos estacionados, a calmaria reinante, a barbearia, o pequeno mercado, a limpeza nas ruas com nomes de flores: Roisiers, Lillas.

Mas logo o devaneio se desfez ao passar em frente a uma janela espelhada: quem era aquele lá refletido?

Depois de acordar, fazer o caminho de volta: Châtelet-Les Halles, o Fórum, Bibliothèque du Cinéma François Truffaut, Église Saint-Eustache, Saint Merry, a Rue Saint-Denis, Rivoli, o Sena, almoço no Au Pied de Couchon, a grande estação, linha 1, George V. Balzac.

Amanhã dia de saltar o antigo muro. E conhecer o que restou da nomenklatura.

Cinquième - 14/09, Mercredi

Beco dos Canudos me levou até a Krasnaya Ploshchad. Uma longa caminhada.

Por que foi embora tão cedo, Dmitrievna? Cadê Os Demônios? Em quais Memórias dos Subsolos habitam? Onde os tantos Humilhados e Ofendidos? Por que não esperou por mim mais um pouco?

Numa cafeteria o pequeno globo terrestre me fez lembrar Dona Teotista, professora de Ciências no curso Ginasial. Como a Terra pode ser redonda!? Nos livros ginasiais falavam de uma “Terra achatada nos polos”. Dona Teotista depois de cumprir o que estava escrito chamava alguns alunos após o término da aula e confidenciava em tom conspiratório: “Não acreditem que a Terra é achatada. Só pode ser redonda! Todos os planetas o são, por que seríamos tão diferentes? Não acreditem sempre no que lhes dizem. Nem nos livros. Desconfiem. Raciocinem por vocês mesmos. Duvidem. A ciência vive das dúvidas!”

Hoje a Terra é redonda em todos os livros. Será?

Sixième - 15/09, Jeudi

Café da manhã de trabalho com Alexey Sitnikov, Director of International Development at Moscow School of Management Skolkovo. Bonito título! Criaram uma Universidade aberta. Open Mind, dizem a todo o momento em alto e bom som. Parece que depois de tantos anos fechados escancararam para os modelos de fora da Cortina: o do MIT é padrão que buscam implementar. Ênfase na inovação, incentivos à criatividade e empreendedorismo, privilégios para as iniciativas individuais. Sentem orgulho da não dependência de recursos governamentais, embora não os dispensem desde que sem interferências na gestão e escolhas. Que diferença!

Momento de ouvir, ouvir, ouvir. Como falam!

Reunião com Andrei Volkov, Dean of Moscow School of Management Skolkovo, no belíssimo e imponente Campus da Skolkovo. Gentilezas e entusiasmos (isso mesmo: no plural!) com tudo: parece que descobriram brinquedos novos. Talvez a súbita liberdade de empreender, inovar, ousar. Capitalistas desde criancinhas!

Ouvir, ouvir, ouvir, ouvir. Como falam!

Almoço no Café Pushkin com o também entusiasmado Ruben Vardanyan, Chaiman an CEO da Moscow School of Management Skolkovo, principal financiador da Escola. Quase solene, embora a simplicidade do anfitrião. Comidas típicas, caviares multicoloridos, strogonoff com a nobre carne brasileira, peixes desconhecidos, drinks misteriosos. E mais trabalho, trabalho, trabalho. Além da piada gratuita sobre o túmulo de Lênin, a poucos anos impensável: tem uma pesada tampa de granito e 24 horas de vigilância porque temem que se levante. Quem diria!

Ouvir, ouvir, ouvir. Como falam!

À noite rápida incursão à Praça Vermelha. Impressionante! Imponente! Limpa! Solene! Não resisto ao lugar comum: a praça é vermelha, a moça ruiva, o sorriso amarelo. O tempo cinza!

De um lado, Lenin, Brejnev e Gagarin. Em frente, Prada (não confundir com Pravda), Zara, Yves Saint Laurent, Dior. Ao fundo, quase que em meia parede com o Kremlim, Mister Mac Donalds! Amazing! Crazy!

Jantar no Taras Bulba, típico restaurante da Ukrânia. Garçonetes floridas, tímidas e amáveis.

C’est la vie!

Septième - 16/09, Vendredi

Café da manhã com trabalho em companhia de Alexei Germanovich, Professor at Moscow School of Management Skolkovo.

Ouvir, ouvir, ouvir. Como falam!

À tarde reunião quase cancelada com nosso velho conhecido desde ontem: Alexei Sitnikov e... mais gentilezas. Mais uma vez, novamente, de novo, ouvir, ouvir, ouvir. Como falam! Elogios ao Brasil: futebol e a excelência das carnes que importam. Abobrinhas.

Fim dos compromissos. Hora de despir as fantasias e retornar à Praça Vermelha sem lenços nem documentos nem agendas a cumprir. Apenas (?) caminhar, olhar, vagar, fotografar, ouvir, sentir, curtir. Na primeira e terceira conjugação.

Surpreendente a beleza do minúsculo coral na pequena igreja de Nossa Senhora de Kazan. Uma marcante emoção regada a ritual longevo e distante. Maravilha!

Jantar italiano ao lado do Ballet Bolshoi. Coisa rara.

Amanhã, adeus Moscou! A canção dos Barqueiros do Volga aqui é coisa do passado!

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

Huitième - 17/09, Samedi

São Petersburgo. Evoé, Pedro, o Grande!

Dia de buscar e sentir às margens do Nievá o ambiente que tanto instigou Fiódor. Quem sabe ainda encontro sinais de suas pegadas na Prospekt Niévski, na Fontanka? Sei que estão lá. Compete reconhecer. Quantas Noites Brancas em claro sofrendo do amor que gela o coração? Dmitrievna, Grigórievna!

Nástienka? Oh! simbiótica Nástienka!

Na Nevski Prospekt o primeiro impacto: comunistas, onde estão? Não fossem as letras e símbolos incompreensíveis os prédios e lojas poderiam refletir qualquer grande cidade do ocidente. As avenidas muito largas surpreendem. Também as longas distâncias desde o pequeno e modesto aeroporto até o hotel bem localizado às margens do citado Nievá.

Café Singer, livraria, pontes da Fontanka, chuvisco incipiente, passagem subterrânea, tráfego intenso e eis a Praça do Hermitage, no momento fechado.

À noite Pizza Napolitana! Bravíssimo! Amanhã será outro dia. Espero.

Auguri!

Neuvième - 18/09, Dimanche

Caminhada até o Hermitage sob céu inesperadamente azul. A chuva prometida pela meteorologia não aconteceu. Bendita incompetência!

Domínio do rococó! Primeiro, segundo e terceiro andares com riquezas de outros mundos não russos. O próprio Palácio do Inverno em si é uma homenagem ao fausto. Quanto ouro, malaquitas verdes e azuis, granitos branquíssimos, pisos marchetados com madeiras raras. Tudo muito bem conservado. O cuidado com o prédio é visível. Não consigo deixar de pensar nos anônimos e compulsórios sacrifícios humanos para construir tudo aquilo. Isso tira um pouco do brilho e da admiração pela obra.

Giro de barco pelo Nievá e Fontanka. Águas limpas, prédios imponentes em todas as margens.

Jantar no Café Literário diante da figura em cera de Alexander Pushkin.

Noite de céu cinzento. Quase Outubro, quase Noites Brancas.

Dixième - 19/09, Lundi

Dia de andar ao léu em São Petersburgo, sem rumo, infiltrando em ruas paralelas à Niévsk à caça de surpresas ora à direita ora à esquerda por vezes em frente. Praça do Palácio, Jardim Alexandrovics e a Catedral de Santo Isaac, com destaque para a grande cúpula externamente revestida em ouro. No interior, pedras raras e outros metais preciosos.

Quase ao findar da tarde caminhada longa até a Fortaleza de São Pedro e São Paulo situada na ilha Vasilevsky: ponte Dostoiévski, mais uma pequena capela no meio de outra praça e passagem pelos muros da fortaleza. Lá dentro, minicidade, a Catedral de Pedro e Paulo onde estão os restos mortais de Pedro, o Grande, Catarina, Romanov, e da família do último Czar, Nicolau II. E, claro, a famosa princesa Anastácia.

Durante a revolução bolchevique serviu de prisão militar onde estiveram detidos Mikhail Bakunin e Fiódor Dostoiévski.

Num ponto de ônibus o convite para o Teatro das Artes: ballet O Canto do Cisne. Nem discuto e compro o bilhete no endereço indicado que peço a uma atendente do Café Singer para traduzir e informar onde fica.

“A noite é bailarina”, roubo de um poema.

Onzième - 20/09, Mardi

Ainda sob o céu azul-chumbo da manhã chuvosa é hora de ir embora rumo ao longínquo aeroporto de São Petersburgo. Observo na manhã ainda escura as ruas já bem movimentadas e as belíssimas estradas de três pistas. Já há sintomas de começo do inverno que se aproxima.

Sukhoy! E lá vou de novo para o moderno e confortável aeroporto de Moscou onde esperarei durante três horas o momento de ir para uma terra que considero também minha. Nos limpíssimos banheiros louças brasileiras: Ideal Standard. Não exportamos apenas carnes!

Em Paris a sensação de estar em casa trás um relaxamento sincero e agradável. A volta à Rue Balzac é quase como o retorno ao lar.

Jantar no vazio restaurante em frente, Baretto, onde o garçom lisboeta faz inúmeras mesuras. Afinidades do idioma. “Lisboa velha cidade, cheia de encanto e beleza...”

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

Douzième - 21/09, Mercredi

Com alguma relutância vou ao cemitério Père Lachaise. Era uma promessa antiga para comigo mesmo, incentivo de inúmeras observações de amigos que lá estiveram. Não via nenhum sentido nisso. Visitar mortos que não são os meus? Abelardo e Heloísa, Chopin, Molière, Oscar Wilde. Para quê? Deles me basta o que fizeram em vida.

Surpreendentemente mal cuidado. Esperava encontrar algo como o cemitério de Florianópolis, Santa Catarina, onde estive para acompanhar a dor de um amigo.

Observei algumas inscrições nas lápides, várias feitas há mais de 200 anos. Em quase todas as frases dos “moradores” pedindo perdão pelos males que em vida pudessem ter causado. Certamente escritas pelos vivos numa tardia catarse freudiana não autorizada.

O inusitado ficou por conta de um mausoléu recém-construído onde há o nome do provável futuro habitante. E somente a data de nascimento! Prevenido!

Num dos pequenos caminhos um casal de velhinhos com muita dificuldade carrega baldes de água e panos de limpeza. Param em um jazigo e começam lenta e cuidadosa faxina. Escovam, jogam água, novamente escovam, jogam água. Retiram pequenas manchas. Escovam. Enxaguam. Escovam. Enxugam. Tudo com muita calma e visível dor e carinho. A cena me emociona. O homem olha para mim que lá estava parado já por algum tempo e entre curioso e ofendido diz com voz firme: mon fils! E volta à dolorosa faxina. Eu me retiro constrangido, comovido e devagarinho para não conspurcar aquele momento de intimidade que só diz respeito aos dois. Ando um pouco, paro, olho para trás; ele ainda me acompanha. Olhar firme, mas agora tranquilo. Parece que entendeu o que eu também estava sentindo.

Vem à lembrança a canção Celui Qui Ne Savait Pas Pleurer, de Piaf: “...pour distraire le chagrin par coeur Il essayait de se concentrer...”

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

Metrô Gambetta, George V, Rue Balzac. E la nave va!

Treisième - 22/09, Jeudi

Centre Georges Pompidou, exposição de Edvard Munch - L’Oeil Moderne - foi o propósito. Mas a atenção ficou concentrada nas loas ao herói moderno.

Paris comemora o centenário do nascimento de Georges Pompidou.

Quando pela primeira aqui estive, em Abril de 1974, a cidade estava envolvida nos procedimentos das honras e pompas fúnebres do Presidente Pompidou recentemente décédée após longa enfermidade.

Primeiro Ministro e herdeiro de Charles De Gaulle, o grande herói contemporâneo, Pompidou merecia dos franceses uma reverência especial embora criticassem o seu governo tido como muito conservador.

A morte lenta e previsível deixara os franceses num transe que os imobilizava. A política partidária, radical naqueles tempos, estava sendo conduzida em banho-maria em respeito ao longo sofrimento do Presidente.

Nesse sentido a morte de Pompidou era um alívio e proporcionava a volta às discussões mais acaloradas sobre a maneira de consolidar a V República fundada pelo então todo poderoso General De Gaulle, eleito Presidente com esmagador número de votos. Havia ainda as feridas causadas pela guerra fratricida da Argélia e a questão dos inúmeros exilados que a França acolhera.

No mesmo momento outro grupo de exilados preparava manifestações quase que diárias nas ruas e praças de Paris. Eram os portugueses, cerca de 300.000 só na capital. Em Lisboa a Revolução dos Cravos estava acontecendo quando a França discutia e se preparava para novas e importantes eleições. Reunidos na Place de La Concorde os patrícios consolidaram a liderança de Mário Soares que com maestria e sensatez controlava o ânimo dos mais revoltados e preparava o retorno à terrinha de modo civilizado e sem revanchismos. Tarefa difícil que ele conduziu muito bem.

A vida tem lá suas vantagens, mesmo sem estridências.

O Centro e a Direita na França tinham dois candidatos que disputavam a herança de Pompidou e De Gaulle: Valéry Giscard d’Estaign, Republicano Independente, ex-Ministro de Finanças, e Jacques Chaban-Delmas, de Bordeaux, ex-Primeiro Ministro e naturalmente o preferido por Pompidou. À esquerda, François Miterrand, socialista e querido e admirado herói da Resistência, também companheiro de De Gaulle nos campos de batalha.

Embora Chaban-Delmas fosse favorito até a última semana antes do pleito, no primeiro turno venceu Giscard d’Estaing com cerca de 30% dos votos; Miterrand obteve 48% e quase se elege. No segundo vence Giscard D’Estaign por pequena margem: menos de 1%! O País estava dividido. Foi a sensatez de Miterrand que inibiu e colocou por terra toda e qualquer exacerbação oposicionista justificando seu posicionamento como uma homenagem ao moderado Georges Pompidou do qual era adversário mas não inimigo.

Por isso nesse momento cresce de importância a reverência dos franceses ao centenário do homem e político que os conduziu em paz e inspirou o país num período de muitas divergências e tumultos, mesmo depois de sua morte.

Hoje, quando estive no Beaubourg, Centre Georges Pompidou, e vi os ícones com a imagem do ex-Presidente lembrei-me dessa história que hoje compreendo melhor. E o cuidado e orgulho que têm os franceses na preservação e culto à sua história. “Vive la France!”, sempre proclamava De Gaulle ao final de seus pronunciamentos desde o exílio na Inglaterra. E parece que o poderoso e inconfundível grito do grande homem continua ainda a ecoar.

“Allons enfant de la patrie le jour de gloire est arrivé...”

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

Quatorzième - 23/09, Vendredi

Dia reservado a reflexões descompromissadas. Sol a pino e céu azul entrando pelas janelas do pequeno apartamento. E bulindo com a alma.

Nada a lamentar. É tempo de pausa para colocar os pensamentos e as obras em dia. Melhor recolhido que encolhido. Rima e conforta.

No rádio, a voz rouca e charmosa de Maurice Chevalier: “Oh! Champs-Elysées, Oh! Champs-Elysées...”

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

Quinzième - 24/09, Samedi

Um bom começo a caminhada até a região da Sorbonne. Rue des Écoles.

Église de San Geniève: a um só tempo austera e despida de imponências, mas relevante para os fiéis das redondezas. São vários os alertas aos turistas de ocasião convidados a retirar-se se não estiverem ali para cultuar a Santa que dizem com orgulho ser mártir e a padroeira de Paris. Esta Église não é um Museu turístico, ameaça com duras letras e exclamações o aviso pendurado logo à entrada. O silêncio respeitoso impressiona.

Na entrada do Panthéon um simpático casal de americanos se aproxima e oferece laissez-passer de 4 dias para todos os Museus de Paris. Desconfiado, indago porque aquela gentileza. Informam que terão que partir e não poderão usá-lo e julgavam ruim desperdiçar o dia de saldo que restava e ninguém aproveitar. Pergunto de onde vêm: “Indiana, United States of America!”, diz o sorridente senhor escandindo vigorosamente as sílabas e letras da sigla U-S-A! Recebo a inesperada oferta, eles desejam boa sorte. Agradeço e ainda com alguma cisma sigo em frente e logo inauguro o mimo recém-recebido dos desconhecidos. Fico um pouco envergonhado de meu preconceito e desconfiança. “Cuidado com estranhos, Zé!”, diz uma tênue voz ao longe.

No Panthéon, estilo neoclássico com pórticos e colunas ao gosto coríntio (é o que diz a inscrição à porta), erguido com o único propósito de reverenciar os grandes homens (e mulheres) da França, mais exaltações, mais frases, mais túmulos de franceses cujas obras e feitos ainda vivem entre nós: Victor Hugo, Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Émile Zola, Alexandre Dumas, Louis Braille, René Descartes, Pierre e Marie Curie, André Malraux. Já não morrem tantos homens e mulheres célebres como antigamente!

Ao centro o pêndulo de Foucault que ainda intriga e impressiona. Já escrevi a palavra impressionar e suas variantes várias vezes, sei disso. Mas não há como evitá-la diante de tantas obras, histórias, reverências, suntuosidades, pompas. Ainda a repetirei, certamente.

Jardin de Luxembourg, o preferido dos parisienses. Na tarde de sábado festivo que se despede do Outono o aglomerado de pessoas não tumultua o ambiente. Ao contrário, tratam-no como um museu ao ar livre, uma Église sem santos não canonizados. Por enquanto! Emana calma nos burburinhos coletivos por entre árvores de folhas já amareladas sob céu azul-profundo. Não sei que cor é essa que acabo de nominar. Não está catalogada nem classificada, mas é a expressão que me veio à mente. Fosse eu um expert ou conhecedor das artes de embelezamento das cútis femininas certamente conheceria nomenclatura adequada para tal cor. Só da tal de fúcsia vi cerca de 32 tons num catálogo na Séphora. Com sete cores me dava tão bem! Haja criatividade!

Do Jardin ao Marais e Quartier um pulo! Rue de Seine a partir do Senat até Saint-Andrès-des-Arts, velha conhecida. Chocolat chaud, fresh cake, petit café et la adition, s'il vous plaît.

Et puis, Église Saint-Eustache onde vou testar se a compra de bilhetes pela internet funcionou direitinho: Stabat Mater, com La Schola Cantorum de Vienne, e o incompleto Réquiem de Mozart com Le Chouer FondArt’uel. Lotado! Sem lenço nem documento enfrento a longa e tumultuada fila. Apresento-me ansioso no balcão d’Accuiel, apenas digo meu nome (Monsieur Camiô) e... zás, bilhetes nas mãos! Vive la France... e aussi la internet!

Duas horas e trinta de espetáculo. Só me resta dizer: impressionante!

Tuba mirum spargens sonum per sepulcra regionum coget omnes ante thronum.” Ou, “A trombeta, espalhando assombroso som por todos os sepulcros da região reunirá a todos diante do trono”. Também pudera. Se é Mozart que convoca, até eu iria! E fui!

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

Seizième - 25/09, Dimanche

La direción d’aujourd’hui? Metrô Abbesses, Montmartre. Na Sacré-Coeur o enfrentamento das íngremes e escaldantes escadarias. Muita luz refletida pelos brancos granitos de todo o conjunto. Tanta luz nem dá para ver direito os detalhes. Irônico, não? “Menos luz, menos! Preciso enxergar melhor.”

Place du Tertre, ruelas e praças minúsculas, tudo mais uma vez mais uma vez mais não sei mais quantas vezes percorridas. E sempre diferentes.

No Le Deux Moulins um petit café et jus d’orange pressée sob olhar de Amèlie Poulin. Não fui dessa vez ao Lapin Agile onde uma pequena escada conduz a porão onde há bons músicos amadores amantes de jazz e muita bière pression.

Passo em frente ao Moulin Rouge já sob sol preguiçoso: restaurado e mais rouge que de costume.

Starbucks, Metrô Pigalle, uma paradinha em George V e... la noche que mi quieras...”

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

Septième - 26/09, Lundi

Musée du Louvre. De novo (!).

Picasso, Modigliani, Matisse, Renoir, Rubens, Fra Angelico, Monet. Melhor o surrealismo das ideias e vontades, filosofo. Por vezes me vem à mente que em algumas salas dos museus a instalação em si é mais imponente e mais bela que as obras que abriga. Dito assim pode parecer uma heresia. Mas é o que sinto. Pardon, mais je ne crois pas que c’est plus grave. Je espère.

Jardin de Tuilleries e ao lado da Place de La Concorde o surpreendente L’Orangerie que eu não conhecia. Enormes painéis de Monet - Les Nymphéas - numa das alas que lhe é inteiramente dedicada. Merecido, mas não faz meu gênero. Noutra ala a coleção de Paul Guillaume, grande marchand e fundador do espaço: bom gosto de um colecionador exposto em local relevante.

Trocadéro para ver a tarde cair e aproveitar a beleza proporcionada pela cor pastel-amarelada (êpa! lá vou eu inventar cor de novo) e a lenta mas perceptível mudança de estação. O momento que a luz da tarde proporciona tem jeito de despedida, pois claridade assim somente depois de Março no próximo ano. Vamos olhar mais e mais e guardar as imagens dessas luzes e semitons incríveis.

Pour dinner? Rue des Anciennes Comédie, Le Pub Saint-Germain. Et voilá!

Huitième - 27/09, Mardi

Les Grands Boulevards: Malesherbes, Haussmann, des Italiens et... l’Opéra!

Starbucks: espressô e diálogo com jovem francês engravatado e fluente em português do Algarve, origem de seus pais. Em dez minutos contou sobre a angústia e estresse que estava vivendo: acabara de fazer teste no Le Figaro para estagiar na área administrativa. Comentou em tom aflito sobre as dificuldades extremas para conseguir oportunidades de trabalho em Paris. Morava de favor com o irmão nos arredores. Estava inseguro, olhar perdido, confuso e visivelmente cansado. Despediu-se estendendo as duas mãos e saiu apressado esquecendo a pasta de couro surrado sobre a cadeira. Alertado voltou e, agradecido, despediu-se novamente. Em silêncio acompanhei seus passos através da vidraça até perdê-lo de vista. Bonne chance, rapaz, restou-me dizer também aflito! Lembrei-me da frase de Willa Cather, citada por Gail Sheehy na obra Passagens: “Só há duas ou três histórias humanas que se repetem furiosamente, como se nunca tivessem acontecido!

Allez, allez!

Uma rápida assinatura de ponto nas Galleries Lafayette onde no rez-de-chaussée a poluição de odores famosos massacra o olfato. Não há como reconhecer um simples e inconfundível odor de lavanda, que dirá de petúnias e gardênias.

Num dos belíssimos quiosques a promotora-química-especialista, muito gentil, informa que há um cheiro novo recém-criado e nova cor de batom: vermelho-turquesa-andrômeda-381. Folle! Indago se a nova cor pode ser encontrada no espectro luminoso ou é de um universo paralelo que não fora detectado por Einstein. Ela não entende, mas percebe que estou brincando e não gosta.

As mulheres não se julgam belas em si mesmas sem usar os corretivos dessa poderosa indústria que as colore e em muitíssimos casos as enfeiam. De cara lavada em geral são lindas. Mas vá dizer que não conseguiu entender a diferença entre o vermelho-turquesa-andrômeda-381 e o vermelho-turquesa-andrômeda-382! La folie perd!

Almoço self-service à Lafayette com estímulo alegre e feliz de garçom da Jamaica. Uma figura!

Puis, como manda o figurino, esperar pelo momento de abertura das cortinas para o duplo espetáculo de ballet clássico no majestoso palco do Palais Garnier. Nada melhor do que aguardar com petit expresso, eau minerale Perrier e chocolat chaud no Café de La Paix!

E chega a hora: Opéra Palais Garnier, sinônimo de suntuosidade.

Porém o aguardado espetáculo de ballet não consegue me desviar do diálogo que presencio à minha frente. Não tenho como deixar de escutar, embora discretamente, mesmo se quisesse. E curioso, não queria. Dois cavalheiros, um francês vestido com muita elegância, e outro, americano, turista certamente. Ambos na mesma faixa etária: em torno de 75 anos, calculo. Não se conheciam até que o americano pergunta algo sobre a peça que está sendo apresentada. É a senha para início de uma longa conversa que também acompanho no intervalo. O francês se apresenta: Maurice, de Toulouse, trabalha com venda de aeronaves. Robert, americano, da Philadelphia, professor aposentado. Num determinado momento Maurice, muito atencioso, diz a Robert que poderiam falar em inglês já que o professor tem evidente dificuldade com a língua francesa e isso fazia Maurice parecer ansioso. Responde que não. Tem o hábito de falar a língua do país que visita mesmo que isso lhe custe muitos dissabores e constrangimentos. Faz isso sempre que viaja. Salvo na China, brinca. Maurice sorri afetuoso, torna-se mais paciente e relaxa. Durante o espetáculo, entre pausas silenciosas, alguns comentários de parte a parte - sem réplicas - sobre um ou outro pas-de-deux, a coreografia da cena, o estilo do Maestro, a leveza da bailarina, a suavidade do oboé, a beleza do teatro. Estão felizes. Quem chegasse agora diria que eram dois amigos de longa data em animado papo sobre artes e outras afinidades. Para mim pareciam dois meninos numa sessão de cinema ou na fila da lanchonete no recreio do curso primário a conversar e descobrir a vida praticando amizade. Talvez nunca mais se encontrem nem se falem nem se conectem. Mas bastaram algumas poucas horas e um único ponto de convergência para inundarmo-nos - nós três – daqueles instantes de descomplicada alegria de meninos. Tão simples!

Busco Alberto Caeiro: “... A espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é e é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra (...) e quanto isso me basta.”

No Metrô fico pensando nisso.

Neuvième - 28/09, Mercredi

Gare Montparnasse, 45 minutos e... Chartres. Depois de quase quarenta anos a mesma praça, o mesmo banco.

Os olhos que viram as belas rosáceas da Catedral em 1974 não mais pertencem à mesma pessoa. Sou outro. Mas a imagens e histórias permanecem vivas e percorro as tortuosas ruas com a sensação de velho conhecido daquelas paragens onde apenas passei uma única vez. Em quarenta anos quantas viagens completadas, quantas ainda farei?

Por hoje é isso. E é muito!

Vingtième - 29/09, Jeudi

Véspera de voltar. Arrumar malas, conferir bilhetes, acertar contas. Todas.

Dia de olhar devagar, prestar atenção, gravar imagens, sons, odores, sensações e levar prá casa. Mescla de sentimentos, de quereres: voltar mas também ficar mais um pouquinho.

Fernando Pessoa me socorre: “...da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo (...) por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer (...) para viajar basta existir...”

Existo, logo viajo!

Um dernier trottoir pelo Quartier Latin, Fontaine, Gibert Jeune, Odeon, rue de Seine, Café Buci, Saint André-des-Arts e o lento e precoce jantar no Le Procope.

Cabe dizer num último olhar às margens do Sena: à bientôt!

Vingteunzième - 30/09, Vendredi

Cinco horas e quarente e cinco minutos de calma manhã. Saio em busca de um táxi. Ruas vazias, Champs-Elysées quase deserta. Nunca a vira assim. Não imaginei que Paris pudesse existir sem o burburinho de centenas e centenas de turistas se atropelando nos largos passeios dessa avenida que é palco do mundo.

Olhar o Arco do Triunfo naquele momento deu-me a sensação por alguns segundos de estar sozinho no universo. Mas a buzina do táxi desperta o devaneio e... “allons nous, jusqu’a à l’autre jour, Paris!”

Bievenue a board, Bon Voyage e... Brasil, São Paulo, Belo Horizonte, Lourdes, BelleVille... et ici je suis moi-même avec tous més amis et tous més amitiés.

“... e assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem (...) a plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar, é a vida desse meu lugar, é a vida.” (Fernando Brant)

É esse o meu lugar, é aqui a minha vida! Dans le monde!

Lá-lá-ri-lá-ri-rá!

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Outubro/2011