segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Epiphânio Camillo - Ainda as palavras

AINDA AS PALAVRAS


Silêncio causticante, calor ensurdecedor. Era assim que Pedro gostava de se expressar. Para ele o dicionário continha poucas palavras para dizer todas as coisas materiais e, principalmente, falar de sentimentos. Como não conseguia inventá-las, dava-lhes sentidos diferentes, surrealistas. O importante era se fazer entender.

Considerava as oxítonas incisivas: pé, anzol, curió, você, cristal, lá. As proparoxítonas marcantes, duras, às vezes cruéis: trâmite - que palavra feia! -, pernóstico, estábulo, frêmito, báscula, melífluo, êxodo, hipótese, último, esdrúxulo. Amava as paroxítonas: engraçado, alhures, amores, acaso, afeto, coragem, querida, menina, beijo, dólar, lápis.

Gostava de ver e ouvir as palavras mais do que simplesmente lê-las. A grafia, os diacríticos, a fonética marcante, a morfologia, a sonoridade, o arranjo das sílabas, o formato, a estética e quantidade de letras, o ritmo sincopado. Tudo lhe parecia mágico, atraente, cativante. Ler, para ele, era também ver e ouvir as palavras. Escutá-las.

Havia algumas, mais que outras, representavam melhor o objeto, o pensamento ou a ação que descreviam. Melífluo, por exemplo, era uma dessas. Urro, outra, quase onomatopaica. Rosa, vitrola, mambembe, aurora, pudicícia, vitória, destrambelhado, careca, perspicaz, viçosa, eram símbolos desse ajuste perfeito entre o significado e a representação. Aliás, a palavra perfeito, ela mesma, era o maior e melhor exemplo desse ajuste melodioso. Outras, porém, nada tinham a ver: pescoço, torresmo, cabresto, vândalo (palavra linda - embora proparoxítona - que bem poderia se referir à beleza e transcendência do luar: uma noite vândala! Que romântico!).

- Você hoje, meu amor, está uma celeuma de iguarias. Linda como um suspiro!

Elza se desmanchava e sorria com todos os dentes, feliz e apaixonada. E Pedro corria novamente ao dicionário. Ávido, sôfrego, pedinte.

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