quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Lindolfo Paoliello - O descobridor de sonhos

O DESCOBRIDOR DE SONHOS

Lindolfo Paoliello

Quem passa cedo pela Savassi, com olhos para ver além do que esqueceu em casa e do que se lembra de fazer durante o dia, vai encontrar abrindo uma porta de loja, ou subindo a grade de uma vitrina, o homem de chapéu de boiadeiro, um instrumento de ferro na mão direita e andar de gente da roça. É o abridor de lojas, ou sei lá que nome seus empregadores lhe dão, o certo é que há anos o observo abrindo um novo dia na Savassi.

Eu o vejo sempre naquele quarteirão da avenida Getúlio Vargas, entre a avenida do Contorno e a rua Alagoas, logo ali onde as casas de meus amigos foram da noite para o dia virando butiques e uma ponta do bairro Funcionários passou então a se chamar Savassi. Naqueles tempos, em que o entretenimento era risonho e franco para quem se satisfazia em passear sem rumo pelo bairro, naqueles tempos Belo Horizonte mudava e a gente nem percebia.

Mas o que importa agora é o presente e ele está. ali, pertinho, à minha frente, incorporado no homem que abre as lojas, e eu o observo enquanto espero que abram o portão da garagem. Ele bate um papo com o porteiro do prédio ao lado, descansado, apoiado no seu instrumento de trabalho. Se não estivéssemos em um ambiente tão urbano, aquele objeto em que ele se apóia poderia ser confundido com um cajado, completando sua figura rústica, e a gente seria levado a procurar onde estaria o rebanho por ele guiado. Mas não é essa a função daquele homem. Seu oficio é abrir e fechar o comércio, coisa que faz, muito bem feito, sem dar pelotas à CDL ou à Prefeitura. Acho mesmo que nem aos seus patrões ele dá mais satisfação; para eles, o que importa é o negócio estar aberto às nove da manhã.

Mas, observando há tanto tempo esse homem agindo, acho que ele deu outro sentido a tudo isso: leva a luz do sol às vitrinas, enquanto expõe às pessoas o sonho do consumo. Ele próprio, em sua humilde condição de aposentado, se extasia com tudo aquilo que descobre a cada dia. E imagino que, maravilhado, tem uma ponta de orgulho em dividir com os outros a visão dos trajes de noite da primeira loja que abriu; os incríveis aparelhos eletrônicos daquela segunda loja; estas jóias preciosas da vitrine em frente. O portão se abre, deixo para trás o universo mágico do descobridor de sonhos, e entro no mundo insensato dos memorandos, telefonemas e papéis.

Machado de Assis - Necrológios

NECROLÓGIOS

"O Brasil acaba de perder o filho que mais alto o elevou no mundo das letras. A Morte, sempre impecável era a sua triste missão, ceifou ontem a vida preciosa de Machado de Assis - o Mestre querido e respeitado da literatura pátria. (...) Machado de Assis nasceu inteiramente pobre e foi no seio da pobreza que ele se criou e deu os primeiros passos na sua vida. A struggle for life tornou-o artista e foi na qualidade de simples compositor que ele entrou um dia para as oficinas da Imprensa Nacional. mas dotado de um invejável talento e de uma vasta erudição, - espírito observador por excelência - Machado de Assis não tardou a revelar-se o escritor primoroso, cujo passamento acaba de trazer a dor e o luto a todo o país. (...) Morreu Machado de Assis. À hora em que escrevo esta frase, nesta mesma seção, em que há apenas algumas semanas, acusava a recepção de Memorial de Ayres, o livro de afeto, que lhe prolongou a vida, ele jaz embalsamado, no salão da Academia de Letras, aguardando a hora solene que todos os que, nesta terra, prezam e amam as manifestações de espírito, lhe vão render as últimas e supremas homenagens, que restritamente, lhe são devidas. Machado de Assis atravessou três gerações literárias e por todas elas foi considerado o que era realmente: um mestre desta difícil arte de escrever. Em face de seu corpo inanimado, pode-se lhe fazer a justiça plena; e essa justiça deve-se traduzir num apoteose. Transformando os seus funerais numa glorificação, o povo brasileiro não rende apenas o preito devido ao pensamento e à arte, glorifica-se a si mesmo, porque é, de fato, uma glória que constituamos o meio superior, indispensável à existência, ao desabrochamento, à evolução de um espírito tão primoroso, como o do autor do Braz Cubas. (...)" 

(A Imprensa, 30 de setembro de 1908)

"Não é uma simples perda. A morte de Machado de Assis é uma catástrofe no mundo das letras nacionais. Era impossível de resto guardar por mais tempo uma vida que se prendia à nossa por um fio delgado. Machado de Assis desde que se foi a sua companheira de tantos anos, já não vivia senão a vida da saudade, a vida da recordação, daquela que fora o conforto da sua existência, o arrimo da sua velhice e a suprema inspiradora de toda a sua generosa obra literária. O desaparecimento do Mestre é tanto mais irreparável quando ele cai de uma altura literária à qual ninguém entre nós atingiu antes dele. (...) Porque Machado de Assis não foi nenhum filho da fortuna, ele teve de lutar incessantemente contra todos os obstáculos da vida. Não gozava saúde, não tinha meios para se desvencilhar das amarguras em que seu espírito soçobraria de certo, se ele não tivesse a couraça de uma energia que ninguém adivinhava na serenidade e na doçura daquela alma de criança. Entrou lutando e tombou vencido pela dor e pela saudade. (...) Era poeta, publicista, cronista, conteur. O seu nome em literatura era Legião. Valia por um pelotão de estrategistas. Era mais forte do que uma guarda de escolhidos. (...)  Descrevia coisas ordinárias extraordinariamente bem. O estilo é o homem. Na naturalidade da obra do Mestre descobre-se sem esforço a simplicidade do homem na sua vida pública e particular. E era esse o maior encanto dos muitos amigos do pranteado morto. (...) Daqui a muitos anos, talvez há muitos séculos, as gerações que substituírem as que se forem mergulhando para o outro lado do mundo terreno, hão de ir buscar à obra do Mestre ensinamentos preciosos. Porque os gênios não desaparecem; transformam-se apenas em anjos de guarda das nações de que foram figuras precípuas. (...)" 

(O Século, 29 de setembro de 1908)

"O homem que hoje desapareceu de entre os vivos não era apenas um fino cultor das letras, um romancista de nomeada, um conteur exímio, um cronista encantador - era acima de tudo isso o mais alto, mais delicado e pertinaz amigo da literatura nacional. Consciente de seu valor, do prestígio de seu nome na arte Machado de Assis não se isolava na legendária torre de marfim dos orgulhosos e misantropos, o que ele buscava não era a glória e o respeito para o seu nome unicamente, o que ele queria ver aureolada de veneração, reconhecida como uma força sublime, como um fator da grandeza nacional era a literatura, a profissão de homem de letras, que amava acima de todos e cultivava com fervor de sacerdote. (...) Daí a sua preocupação tão ardente, tão fanática, que foi quase ingênua, de formar academias, criar um núcleo que atraísse o olhar de todo um povo, fundar a aristocracia das letras. (...) O grande escritor Machado de Assis sofria há muito tempo e veio a piorar rapidamente depois da morte de sua idolatrada esposa. Domingo último mais se afirmaram os padecimentos até que hoje às 3,45 da madrugada, a arteriosclerose teve o seu termo final. (...) Foi agraciado com os títulos de cavalheiro e oficial da Ordem da Rosa e pelo seu valor literário mereceu a eleição à presidência da Academia Brasileira de Letras."

(A Tribuna, 29 de setembro de 1908)

"A literatura nacional acaba de sofrer, com a morte de Machado de Assis, seu chefe incontestado, uma perda verdadeiramente irreparável, e que não podia ser maior nem mais dolorosa. Sem falar nos seus dotes de imaginação, que eram extraordinários, Machado de Assis foi um dos escritores mais puros da língua portuguesa no século XIX e o seu nome será repetido a par de Garrett, Camillo e outros mestres ilustres. Favorecido por uma cultura literária formidável e pela faculdade do trabalho abundante e fácil, Machado de Assis deixa uma obra considerável, a maior, talvez, que ainda saiu da pena de um homem de letras brasileiro. Na poesia, que foi a primeira manifestação do seu talento, no romance, no teatro, no conto, na fantasia, na crônica, em tudo ele brilhou intensamente; nenhum trabalho, ainda o mais insignificante, lhe saiu das mãos que não tivesse o cunho do definitivo, do bem acabado. (...) Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839 e era filho legítimo do operário Francisco José de Assis e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis. Os seus estudos foram irregulares. Ao deixar a escola de primeiras letras, sabendo apenas ler e escrever, tratou de instruir-se a si mesmo, sem professores nem conselheiros, e assim adquiriu todos os conhecimentos indispensáveis à carreira com que devia ilustrar o seu nome. (...) Em 1858, Machado de Assis abraçou a arte tipográfica, mas no ano seguinte abandonou-a, para ser revisor de provas da famosa casa de Paula Brito e do Correio Mercantil. Em 25 de março de 1860 encetou a sua vida jornalística, ao lado de Saldanha Marinho, Quintino Bocayuva e César Muzio, no Diário do Rio de Janeiro. (...) Em 1867 o governo imperial agraciou-o com o grau de cavalheiro da Ordem da Rosa, por serviços prestados às letras brasileiras; em 1888, a princesa D. Isabel elevou-o a oficial da mesma ordem; mas a honra maior que ele recebeu em vida, foi a presidência da Academia Brasileira, que os seus confrades lhe deram por aclamação. Em 1869 casou-se Machado de Assis com D. Carolina Augusta Xavier de Novaes, irmã de Faustino Xavier de Novaes, a qual faleceu há três anos. A viuvez foi para o grande escritor um golpe terrível, que o aniquilou, agravando os seus antigos padecimentos. Pode-se dizer que, depois da morte da querida esposa, Machado de Assis não viveu mais: morria aos poucos. Sozinho no mundo, sem filhos, sem parentes, não resistiu à perda da extremosa companheira de tantos anos. (...)"

(O Paiz, 30 de setembro de 1908)

"Morreu Machado de Assis. Perde a nossa língua um de seus mais vigorosos e profundos escritores. Com ele desaparece a mais leve e a mais encantadora das nossas prosas, a mais completa e a mais perfeita das organizações literárias que possuímos. Poeta, romancista, dramaturgo e jornalista, era Machado de Assis o tipo culminante e o mais simpático do nosso mundo de letras. Sua perda é irreparável. Num país como o nosso, já tão pobre de espíritos brilhantes como o seu, esse desaparecimento é mais importante do que parece. (...) Não mais nos será dado ler novos primores da pena que escreveu Quincas Borba e Dom Casmurro. Machado de Assis desaparece e embora cubram-lhe a tumba de flores e a sua memória da mais profunda saudade, do seu estro só nos restará a lembrança que nos seus livros, no entanto, palpitará sempre luminosa e forte como o sol. (...)  Quem entrasse, às 4 horas, no Guarnier havia de ver, invariavelmente, um homem pequeno, franzino, de barba curta e quase branca, sempre numa das cadeiras que correm a fila das brochuras francesas, entre as pernas um indefectível guarda-chuva. Tinha um ar cansado, se bem que a fisionomia lhe sorrisse todas as vezes que um chapéu se erguesse ou uma mão apertasse a sua, sempre com grande interesse e respeito. Era Machado de Assis. Fechada a sua repartição, subia ele Ouvidor acima, caminho do Guarnier, àquela mesma hora, sempre com o seu passo rítmico e nervoso de quem vai ao cumprimento de um dever sagrado. (...) E velhos e novos, acadêmicos e poetas que surgissem, óculos e cabeleiras, cercavam-no com interesse, com curiosidade ou admiração. De toda a grande nave da livraria, era a figura, a mais vista e a mais admirada. (...)"

(Correio da Manhã, 30 de setembro de 1908)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Silviano Santiago - Prazer da Leitura

PRAZER DA LEITURA, DESPRAZER DA VIAGEM

Silviano Santiago

Leitura e viagem são pares inseparáveis, às vezes desagradavelmente contraditórios. A leitura é sempre uma viagem simbólica. Página após página, nossos olhos nos introduzem num universo até então nunca vislumbrado. Entramos nos vários volumes duma enciclopédia pela porta estreita de historietas corriqueiras, banais, sem grandes heróis e grandes feitos. De repente, - tomemos este exemplo – abrimos um livro e estamos em Londres, caminhando pelos seus boulevards e ruas, investigando panoramas dentro dos parques, descobrindo os rigores do inverno e o sentido do cachecol e das luvas. Estamos freqüentando cafés e restaurantes cujos nomes até então nos eram completa ou vagamente desconhecidos. Participamos de conversas íntimas ou amorosas, experimentamos comidas e licores cujos nomes nos inebriam e nos fazem sonhar acordados. Podemos entrara numa casa de família pelas mãos de Katherine Mansfield e conhecer os detalhes das difíceis relações cotidianas. Brigas, desentendimentos, ciúmes, ódios, intrigas, invejas, olhares, amores, sentimentos inacabados. Podemos entrar num escritório em companhia de E. M. Forster e dar-nos conta das complexas relações humanas e trabalhistas numa sociedade de castas, situação humana tão intrigante quanto a criada pelas reclamações feitas pelo pai à hora da refeição e que entraram por um ouvido e saíram pelo outro.

Fechamos o livro com um conhecimento estranho e familiar do  desconhecido. Um cineminha continua a funcionar na memória, desparafusando certezas e profundidades. Imagens estranhas e íntimas. Chocantes e naturais. Tocamos com o dedo a realidade vista através das lentes de projeção e ganhamos o sono.

Para o adolescente, a leitura acaba sendo um prenúncio da viagem que fará, ou nunca fará. Depende. Caso seja um ávido leitor de romances, terá conhecido na intimidade das aventuras rocambolescas não apenas outras cidades do seu próprio país, como outras cidades do mundo. Terá tido acesso a vários pontos de vista que descrevem a cidade que lhe apetece como uma obsessão. Terá lido variados autores que a descrevem e a fazem funcionar com as voltas e as velocidades programadas das hélices de um liquidificador. Terá, ao final de algum tempo, um panorama mais rico daquela cidade que do bairro onde nasceu e vive.

Às vezes indisfarçável, há um sentido de poder sobre as coisas e os seres humanos, sobre o mundo, que advém das múltiplas leituras. O universo cabe inteiro numa bolinha redonda chamada cabeça e é movimentado pelo ditador que nela mora. As pequenas e mesquinhas aventuras do cotidiano familiar e escolar ganham a dimensão do ridículo. As histórias contadas pelos companheiros de repente são esvaziadas pela imaginação que optou pela curiosidade que transgride os limites dos quatro cantos da cidade. Você se tornou melancólico e altivo. Você foi de dentro e agora se alimenta lá fora. Já não consegue enxergar o que lhe cerca com os mesmos cindo sentidos dos que lhe são próximos ou pares. Nada lhe sobra, tudo lhe falta. Faltam-lhe odores, sabores, peles, paisagens, cores, tudo o que te pertence por direito de leitura e que só pode ser passageiramente satisfeito se você se adentrar por outra leitura.

Um livro reclama um outro, como um cigarro, um copo de uísque, ou como uma droga. Não há lógica contra o vício. Só a força de vontade entorpece o vício. E aquela, pobre coitada.

Finalmente, você se preparou para viver experiências que são tão extraordinárias quanto as ocasionadas vicariamente pela leitura. Você está onde sonhou estar. Tudo que era íntimo readquire distância à medida que se aproxima. Você desconhece o que conhece. Sente de maneira aguda um aperto no coração, uma retorcida sensação de déjà vu nos olhos. Não existe maior decepção para você que a experimentada nos primeiros passos dados na cidade estrangeira que você conhece tanto de leitura.

Uma imensa e infinita placa de vidro baixa como num filme de ficção científica entre os seus olhos e a realidade ambiente. A placa recobre como gigantescas bolhas os lugares, os seres e as coisas, silenciando-os seja pela linguagem dos lábios, seja pela falta de calor humano.

Não há viagem simbólica, ou seja, leitura, que prepare para a desilusão da viagem. Pelo contrário. Maior o número de leituras, maior a decepção. Por sorte, há o entusiasmo acumulado durante a inércia da leitura. Ele é o grande poço de onde se extrai, nos momentos de maior desalento, a água benta que reanima, fortalecendo os músculos e a sensibilidade pelo sentido da fraternidade universal.

O entusiasmo força você a entrar onde já não tem mais prazer em entrar. Uma outra e definitiva vez, por que não? Preferia ter ficado de fora, atrás da bolha extraterrestre, apreciando as coisas e os seres como os apreciava passando as páginas do livro. Para quê? Você já viu o que vê sem ter visto. Você vê já tendo entrevisto. O entusiasmo força. Você tenta se refugiar no livro, abrigo de sua desesperança. Mas o livro não existe mais, esquecido que ficou numa estante perdida no tempo e no espaço. Você não tem alternativa. Você entra no restaurante. O paladar rechaça as iguarias. O olfato estranha os delicados perfumes. As palavras são poucas e pobres para dar conta do ambiente que te cerca e alimentava a sua imaginação provinciana.

“Tudo aqui tem um nome” – ecoa-lhe na memória uma passagem do livro. A graça está em conhecer cada coisa pelo seu próprio nome. Coce troca o nome das coisas, despertando o riso dos personagens. Para pedir um chope, você deve ter usado uma palavra livresca, há muito fora de circulação. A vergonha está em desconhecer o nome atual. O nariz respinga a rinite que veio com o vento e o frio. Nada é tão fácil de ser acuado contra a parede quanto um coração em chamas no estrangeiro. Tão fácil trespassá-lo com uma espada e ficar colhendo as gotas de sangue como um seringueiro solitário na floresta amazônica. Depois de anos e anos de segredos verdades com carinho de donzela, você tem, aberta no peito, uma ferida cujos lábios dizem e repetem: “Eu não sou turista!”. E mais você grita, mais a ferida cicatriza em marcha de sobrevivência.

Talvez seja por essa razão que grandes viajantes simbólicos, como o poeta Carlos Drummond de Andrade, pouco ou quase nunca pisaram solo estrangeiro. Sabemos de viagens suas somente até a Argentina. Preferia as asas leves, infantis e inflamadas da sua coleção de livros escritos por Jules Verne.

É uma hipótese que acalenta o prazer da leitura e disfarça o desprazer da viagem.

(JB, 31/10/1998)

Simon Schwartzman - Tempos de Capanema

TEMPOS DE CAPANEMA


Simon Schwartzman
Helena Maria Bousquet Bomeny
Vanda Maria Ribeiro Costa

Introdução à segunda edição

Gustavo Capanema faria cem anos em agosto de 2000: tempo de virada do século, de quinhentos anos do Brasil. É um momento de reexame do passado e de indagação sobre o futuro, do qual a reedição deste livro faz parte: por que somos como somos? Como seremos daqui por diante? Quanto de nosso futuro está determinado ou contido no nosso passado?

Este reexame não decorre de uma simples efeméride, seja o centenário de Capanema, os cinco séculos do Brasil, ou a chegada do novo milênio. A imagem do fim do século XX foi a queda do muro de Berlim em 1989, que não só marcou o fim do mundo polarizado da guerra fria, como também simbolizou a implosão de todo um universo de concepções e interpretações a respeito do passado e do futuro de nossa vida em sociedade, sem que tenhamos ainda clareza sobre o que virá em seu lugar. Também no Brasil estamos entrando em um novo tempo, não só pela influência do que acontece além das fronteiras, mas também pelo esforço de deixar para trás um século de alternâncias entre experiências autoritárias que se frustram e aberturas democráticas que não atingem a plenitude, e que não têm permitido que o país atinja os padrões mínimos de educação, justiça social e produção de riqueza que compatíveis com o mundo moderno.

Publicado em 1984, como o primeiro resultado das pesquisas no arquivo Gustavo Capanema, depositado no CPDOC em 1980, este livro já antecipava um dos temas importantes deste reexame, o do relacionamento entre os intelectuais e o autoritarismo político.

Os anos Capanema ficariam na lembrança como um momento da história republicana brasileira em que política, educação e cultura estiveram associadas de forma singular e notável, e os arquivos revelaram um paradoxo que exigia um exercício cuidadoso de análise e interpretação. Aos decretos e procedimentos afinados com a política autoritária do Estado Novo, sobrepunham-se falas de uma correspondência privada e pessoal de uma intelectualidade de todos nós conhecida, identificada com as causas sociais e de modernização cultural, e admirada e cultivada como patrimônio cultural e afetivo do país. Entre esses intelectuais e artistas estavam Carlos Drummond de Andrade, Alceu Amoroso Lima, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Heitor Villa Lobos, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Gilberto Freyre, Cândido Portinari, além dos educadores que marcariam a história brasileira como pioneiros e formuladores dos projetos políticos e institucionais que deram vida ao debate educacional no país desde os anos 1920, como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e o próprio Francisco Campos, envolvido com as reformas educacionais em Minas Gerais desde os anos 1920 e primeiro ministro a ocupar a pasta da Educação em 1930.

Como entender que figuras tão ilustres, e de horizontes aparentemente tão abertos, convivessem com políticas de cunho autoritário e repressor, como o fechamento da Universidade do Distrito Federal em 1939, a criação do movimento Juventude Brasileira, de inspiração inequívoca no fascismo em voga na Europa dos anos 1930, e ainda a perseguição aos intelectuais de pensamento liberal, identificados pelas lideranças conservadoras do Estado com aos movimentos de esquerda? Por um lado, como os arquivos revelam, particularmente na correspondência de Carlos Drummond e Mário de Andrade, esta não era uma convivência tranqüila, mas, ao contrário, cheia de tensões e ansiedades. Mas, por outro, a idéia de que os regimes fortes de esquerda e de direita poderiam abrir caminho para um futuro melhor sempre atraiu intelectuais brilhantes em todo o mundo, de Leon Trotsky a Martin Heidegger, passando por André Malraux e Maurice Merleau-Ponty, sem falar em literatos como Pablo Neruda, Miguel Ángel Asturias e Jorge Amado, - e o Brasil não seria exceção. Essa proximidade não passaria sem deixar seqüelas importantes, entre as quais as grandes dificuldades que tantos entre nossos intelectuais encontrariam para entender e defender, ao lado dos direitos sociais, os valores do pluralismo, dos direitos individuais e da ordem jurídica democrática.

Faz parte também deste reexame um novo olhar para os temas da educação e da cultura. É curioso como, hoje, esses temas parecem recuperar a importância que tinham nos anos 1920 e 1930, quando os debates sobre a educação e a cultura brasileiras mobilizavam os intelectuais, incendiavam as disputas entre leigos e católicos e ocupavam espaços nos jornais.

Naqueles anos, quando ainda não se falava de subdesenvolvimento e dependência, e sim de atraso e civilização, acreditava-se que, pela educação, se formariam o caráter moral e a competência profissional dos cidadãos, e que isto determinaria o futuro da Nação. Os movimentos e a disputa pela educação, e sobretudo seu controle pelo Estado ou pela Igreja, eram vividos como uma luta pela própria alma do país. Leigos e católicos concordavam que, sem educação, essa alma não existiria. Ela precisava ser construída, tirando-se o país da barbárie, do atraso e da indigência moral. O que se disputava era quem cuidaria da formação da criança que aprendia suas primeiras letras, o que fatalmente a destinaria para o Bem ou para o Mal, segundo a visão de mundo de cada um.

Como este livro revela, a educação pública, que até os anos 1930 praticamente não existia, começou a ganhar forma nos tempos de Capanema, e cresceu deste então de forma lenta e precária. A Constituição de 1946 previa a votação uma "Lei de Diretrizes e Bases da Educação" que deveria dar um novo sentido e formato à educação do país. O Brasil não conhecera, no entanto, outra maneira de lidar com a educação além da que fora criada no governo Vargas, e a presença de Gustavo Capanema no Congresso, depois de longa permanência no Ministério da Educação, inibiu as discussões que tomavam como ponto de partida o projeto elaborado sob sua gestão no período de 1934 a 1945. Em pauta desde 1948, por iniciativa de Clemente Mariani, ministro da Educação de Dutra, a lei só seria votada em 1961, em meio a um debate que reproduzia, até mesmo nos personagens, as disputas de 30 anos antes. A principal diferença era que, nos anos 30, católicos e leigos disputavam o controle da educação pública; nos anos 1960, a disputa aparecia como um confronto entre a educação pública, que se pretendia universal e gratuita, a proporcionada pelo Estado, e a educação privada, defendida como um direito das famílias, às quais o setor público deveria apoiar. Anísio Teixeira e o grupo da Escola Nova de um lado; Carlos Lacerda e Dom Hélder Câmara de outro, com a Igreja Católica defendendo a primazia dos direitos da família e os interesses das escolas católicas, que respondiam por parcela significativa do ensino privado oferecido no país. No final dos anos 1950, precisamente em 1959, Fernando de Azevedo redige outro Manifesto à Nação, "Uma vez mais convocados", em alusão ao "Manifesto dos Pioneiros da Educação" lançado em 1932.

Poucos se lembram do resultado dessa disputa, que terminou, nominalmente pelo menos, com a vitória da corrente "privatista," liderada por Carlos Lacerda. Havia o temor de que a nova legislação, ao reconhecer a liberdade de escolha das famílias para matricular seus filhos em escolas privadas, abrisse caminho para a canalização dos recursos públicos para estas escolas, em detrimento da educação pública e leiga. Na prática, o Estado continuou com a responsabilidade da educação pública, que nunca chegou a desempenhar de forma plena. As famílias de classe média e alta assumiram, como sempre fizeram, a responsabilidade pela educação de seus filhos, preparando-os para as melhores escolas públicas secundárias ou superiores ou colocando-os em escolas particulares, a maioria dirigida por religiosos. A Igreja Católica, que nos anos 1930 havia tentado assumir o controle da educação pública do país, limitava-se agora à administração de um conjunto restrito de escolas que, quem sabe, ainda poderiam cuidar da alma das elites.

A partir dos anos 1960, os grandes temas nacionais passaram a ser outros. O que preocupava, agora, eram o desenvolvimento e a industrialização, a dependência e o nacionalismo, as ameaças do populismo e o autoritarismo que acabou se implantando novamente e polarizando o país por duas décadas, deixando como herança as grandes questões da distribuição da renda, da inflação, da dívida externa e da estagnação econômica. Se perguntados, todos concordariam que a educação era importante, assim como é importante o amor materno, e que sem eles nada se poderia fazer. Mas poucos tinham idéias próprias a respeito do que fazer, na prática, com a educação; era algo a ser visto quando os outros problemas tivessem sido resolvidos.

Enquanto isso, a educação continuava a se expandir, impulsionada pelo crescimento das cidades e pela expansão do setor público, dentro das linhas mestras desenhadas nos anos 1930. Para os políticos, em todos os níveis, os sistemas educacionais se tornaram moedas de troca importantes, que permitiam distribuir empregos, contratar serviços e intercambiar favores. Ao mesmo tempo, formou-se toda uma comunidade de professores e professoras, pedagogos, especialistas, funcionários e empresários da educação que faziam congressos, disputavam verbas, continuavam a discutir a importância, os direitos e os espaços da educação pública, privada e religiosa. Esses profissionais se preparavam para reproduzir, depois da Constituição de 1988, os mesmos debates dos anos 1930 e 1960, que deveriam marcar a segunda Lei de Diretrizes e Bases da Educação, idealizada para um novo tempo que chegou a se chamar, por alguns anos, de Nova República. Foi uma batalha que não houve: a Lei de Diretrizes e Bases aprovada pelo Congresso Nacional em 1996 não foi o resultado de um grande debate nacional, e sim da adoção de um substitutivo de última hora apresentado pelo então senador Darcy Ribeiro, que havia estado nas trincheiras da escola pública nos anos 1950 e 1960, mas que buscava então olhar para a educação com outros olhos.

A razão deste anticlímax talvez tenha sido que, paradoxalmente, na medida em que a educação crescia, o tema da educação perdia sentido para grande parte dos próprios educadores. No passado, na tradição dos conceitos pedagógicos da Escola Nova, trazidos por Anísio Teixeira, e das pesquisas educacionais, iniciadas por Lourenço Filho, os educadores se preocupavam com coisas tais como com técnicas pedagógicas, conteúdos dos currículos, psicologia da aprendizagem dos alunos. Professores e professoras acreditavam que tinham uma missão importante a desempenhar e se frustravam quando percebiam que se estavam proletarizando, que não recebiam o reconhecimento social que esperavam, que as escolas contavam com muito poucos recursos e nenhuma autonomia de ação, e que as crianças chegavam a elas, cada vez mais, sem as condições mínimas para um aprendizado satisfatório. Os temas pedagógicos pareciam secundários e irrelevantes, e as questões que passaram a dominar os cursos, congressos, movimentos e publicações dos educadores não eram as da educação enquanto tal, mas questões de natureza sindical - salários, sobretudo - ou política e econômica. Assim, nos anos 1990, passou-se a tratar de temas como os direitos sociais, a globalização e o neoliberalismo, que se traduziam quase que diretamente em opções político-partidárias e eleitorais. Com isso, os educadores se transformaram, de guardiões da alma nacional, e um grupo de pressão como tantos outros, e perderam a capacidade de galvanizar a atenção e o interesse do país.

E no entanto, é justamente neste momento que a educação volta a ser percebida como tendo um papel importante e central. Já não se discute tanto a alma do país - se cívica, leiga ou católica -, e sim o desempenho e sobrevivência do corpo. Como nos anos 1920, a educação deixa de ser tratada como conseqüência e começa a ser vista como causa. Não são mais os educadores, e sim os economistas, muito mais em evidência, que argumentam que a economia só cresce quando há investimento em recursos humanos, e que as desigualdades sociais se devem, sobretudo, às desigualdades de oportunidades educacionais. Internacionalmente, a bandeira da educação deixa de ser monopólio da UNESCO e passa a ser dividida com outras agências como o Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, UNICEF. Empresários que antes apoiavam a educação, no máximo, como caridade, e viviam na prática dos preços baixos dos produtos fabricados com mão de obra desqualificada, agora buscam treinar melhor seus empregados e concordam em contribuir para que as escolas formem melhor seus alunos, e lhes forneçam mão de obra mais qualificada. Esse interesse renovado pela educação chega também aos políticos, que falam de suas realizações e promessas na área da educação para ganhar votos e, quando eleitos, já começam a não usar os ministérios e secretarias de educação como moedas partidárias nas negociações de apoios e de votos.

A grande questão da educação brasileira, hoje, é como transformar o antigo sistema montado pelo Ministério da Educação nos anos 1930, e conservado sem mudanças fundamentais ao longo de quase 60 anos, em um sistema moderno, eficiente, abrangente e adaptado aos novos tempos. Este livro ajuda a entender parte do problema, que é o da origem de muitas práticas que hoje podem nos parecer óbvias e naturais, mas que foram opções de determinada época e momento, nunca mais revistas. Coisas como a centralização administrativa, que faz das secretarias de educação de estados como São Paulo e Minas Gerais, com centenas de milhares de funcionários, estruturas quase impossíveis de administrar; a prioridade dada aos títulos e diplomas sobre os conteúdos; a crença no poder dos currículos definidos no papel e controlados por sistemas burocráticos e cartoriais; a existência inquestionada de instituições vetustas como os antigos conselhos oficiais de educação; a predominância do formalismo e do ritualismo nos processos pedagógicos; e o isolamento que acabou ocorrendo entre o mundo da educação e o mundo real, esvaziando o sentido do primeiro e limitando seus recursos. As novas palavras de ordem são envolvimento da comunidade com as escolas, descentralização, autonomia, iniciativa local, avaliação, uso de novas tecnologias, ênfase nos conteúdos. Os temas da alma ressurgem com novas roupagens, como a preocupação com o meio ambiente, o vínculo das escolas com as comunidades, e os direitos e deveres da cidadania. É uma revolução em andamento, que vem ocorrendo tanto no nível federal como em muitos estados e municípios, e que já se reflete nos grandes números, com a explosão da educação média e o aumento nos anos de escolaridade das crianças, mas que ainda está longe de adquirir forma e se completar.

A cultura, nos tempos de Capanema, também era vista como campo de construção da alma nacional. Nos anos 1920, o modernismo havia vislumbrado a possibilidade de construção de um país mais autêntico, menos mimético, e essa busca do "Brasil Real" na literatura, na pintura e na música se mesclava com a busca de um "Brasil real" na política e na vida em sociedade, onde o formalismo da república oligárquica pudesse ser substituído pela construção de um Estado nacional forte e voltado para o progresso e para o futuro. Essa aproximação entre a busca da autenticidade e o autoritarismo político era dominante naqueles anos, em que as democracias pareciam condenadas ao fracasso, e os autoritarismos de esquerda e de direita se confundiam em nome dos valores, supostamente mais altos, da cultura e da nacionalidade. Capanema, inspirado por Francisco Campos, apoiado em Carlos Drummond e Alceu Amoroso Lima, procura construir seu projeto cultural em cima dessa ambigüidade. Por um lado, havia que valorizar os homens de letras, as artes, e criar para isto um mecenato estatal. Por outro, havia que produzir os símbolos culturais do Estado Novo, que substituíssem a iconografia da República, que mal conseguira desmontar a hagiologia do Império. Os símbolos do novo Brasil buscariam suas raízes nos mitos da cultura indígena e nas epopéias dos bandeirantes; os monumentos do passado deveriam ser recuperados e preservados na memória nacional; e o novo país se consubstanciaria nas paradas cívicas, nos grandes projetos arquitetônicos de Piacentini e Lúcio Costa, nas iconografias nativistas de Portinari, e nos grandes concertos orfeônicos de Villa Lobos. As correspondências de Drummond, Mário de Andrade e Portinari, neste livro, mostram o lado escuro deste projeto ambicioso, que não seria suficiente, no entanto, para desfazer a imagem que ficou dos tempos de Capanema como uma época de ouro do mecenato cultural.

A principal realização do Estado Novo na área da cultura talvez tenha sido a implantação de um sistema de recuperação e preservação do patrimônio artístico e cultural do país, que daria testemunho do passado mais autêntico e da identidade nacional que se buscava construir. Tão forte foi a atmosfera que envolveu a política de preservação do patrimônio que, até hoje, aquele período é lembrado como a "idade de ouro" do patrimônio brasileiro. Era o projeto ambicioso de organização e sistematização da cultura brasileira em todas as suas manifestações que entusiasmava Mário de Andrade e Rodrigo Mello Franco de Andrade e que encontraria outro breve momento de brilho nos anos 1970, sob a liderança do designer Aloísio Magalhães.

Para a cultura, como para a educação, cabe indagar em que medida os pressupostos e os formatos institucionais criados naqueles tempos ainda subsistem, e se deveriam ser recuperados ou substituídos por outros supostos e instituições. A "cultura" do antigo Ministério da Educação e Cultura se transformou hoje em um Ministério próprio, que já não tem a missão de construir os símbolos e a mitologia da nacionalidade e se dedica, sobretudo, a manter ainda viva a chama do mecenato, mas sem um objetivo claro e definido. Em parte, trata-se de recuperar e reativar as tradições e costumes de populações empobrecidas e marginalizadas, não para construir a partir daí uma nova Cultura nacional, como pensaria talvez Mário de Andrade, mas simplesmente, para recuperar o sentido de identidade e respeito próprio dessas populações.

A rotina do patrimônio, sucessivamente identificada em uma nova sigla que é definida em uma seção do Ministério da Cultura, é hoje mais uma rotina burocrática e funcional do que a expressão de idéias e projetos ou a atualização de dinâmicas mais sintonizadas com o novo perfil de sociedade metropolitana e da informação que a sociedade brasileira vem adquirindo. A recuperação e preservação do patrimônio histórico são, cada vez mais, iniciativas associadas à indústria do turismo, e não à preocupação com a recuperação da memória nacional. Existem mecanismos para o financiamento de produtos culturais para o mercado de consumo - sobretudo filmes e teatro - cujo principal propósito parece ser sua própria existência como indústria cultural, e não mais o estímulo ao fortalecimento de conteúdos culturais específicos.

Há quem lamente esta pulverização e comercialização da cultura, e sinta falta dos projetos ambiciosos, ainda que frustrados, do passado. Há quem acredite, ao contrário, que existe uma nova cultura em formação, muito mais fragmentada e complexa do que a dos projetos do passado, combinando a vida local com o mundo global, a língua nacional com a língua franca das comunicações, o mundo das idéias e o mundo do trabalho, e dando prioridade a valores individuais e interpessoais, como os da competência, responsabilidade, criatividade, solidariedade e pluralismo, e não mais aos valores do Estado, da Nação e da Cultura.

Voltar aos tempos de Capanema é voltar, de alguma forma, às matrizes de valores, idéias e instituições que ainda perduram em nosso inconsciente, encarnados em nossas leis e instituições, e que nos impedem de saber se realmente ainda as queremos, ou se devemos procurar outros rumos e alternativas.

Bastos Tigre - Sintaxe feminina

SINTAXE FEMININA

Bastos Tigre


Leio: "Meu bem não passa-se um só dia
Que de você não lembre-me"... Ora dá-se!
Mas que terrível idiossincrasia!
Este anjo tem as regras de sintaxe!

Continuo: "Em ti penso noite e dia...
Se como eu amo a ti, você me amasse!
"Não! É demais! Com bruta grosseria
A gramática insulta em plena face!

Respondo: "Sofres? Sofrerei contigo...
Por que razão te ralas e consomes?
Não vês em mim teu dedicado amigo?

Jamais, assim, por teu algoz me tomes!
Tu me colocas mal! Fazes comigo

O mesmo que fizeste com os pronomes!..

João Ubaldo Viera, Titãs - Epitáfio

EPITÁFIO

João Ubaldo Viera

Titãs


Devia ter amado mais, ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais e até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado as pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar

Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...

Devia ter complicado menos
Trabalhado menos

Tobias Barreto - Dize-me sempre

DIZE-ME SEMPRE



Tobias Barreto


Que te custa uma frase, um consolo
para o meu coração, que padece,
como afago pisar sobre a juba
do leão, que a teus pés adormece?

Que te custa enganar-me falando,
se a tua alma por mim não suspira?
Quero ouvir-te dizer que me amas,
inda mesmo que seja mentira!...