quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Lindolfo Paoliello - O descobridor de sonhos

O DESCOBRIDOR DE SONHOS

Lindolfo Paoliello

Quem passa cedo pela Savassi, com olhos para ver além do que esqueceu em casa e do que se lembra de fazer durante o dia, vai encontrar abrindo uma porta de loja, ou subindo a grade de uma vitrina, o homem de chapéu de boiadeiro, um instrumento de ferro na mão direita e andar de gente da roça. É o abridor de lojas, ou sei lá que nome seus empregadores lhe dão, o certo é que há anos o observo abrindo um novo dia na Savassi.

Eu o vejo sempre naquele quarteirão da avenida Getúlio Vargas, entre a avenida do Contorno e a rua Alagoas, logo ali onde as casas de meus amigos foram da noite para o dia virando butiques e uma ponta do bairro Funcionários passou então a se chamar Savassi. Naqueles tempos, em que o entretenimento era risonho e franco para quem se satisfazia em passear sem rumo pelo bairro, naqueles tempos Belo Horizonte mudava e a gente nem percebia.

Mas o que importa agora é o presente e ele está. ali, pertinho, à minha frente, incorporado no homem que abre as lojas, e eu o observo enquanto espero que abram o portão da garagem. Ele bate um papo com o porteiro do prédio ao lado, descansado, apoiado no seu instrumento de trabalho. Se não estivéssemos em um ambiente tão urbano, aquele objeto em que ele se apóia poderia ser confundido com um cajado, completando sua figura rústica, e a gente seria levado a procurar onde estaria o rebanho por ele guiado. Mas não é essa a função daquele homem. Seu oficio é abrir e fechar o comércio, coisa que faz, muito bem feito, sem dar pelotas à CDL ou à Prefeitura. Acho mesmo que nem aos seus patrões ele dá mais satisfação; para eles, o que importa é o negócio estar aberto às nove da manhã.

Mas, observando há tanto tempo esse homem agindo, acho que ele deu outro sentido a tudo isso: leva a luz do sol às vitrinas, enquanto expõe às pessoas o sonho do consumo. Ele próprio, em sua humilde condição de aposentado, se extasia com tudo aquilo que descobre a cada dia. E imagino que, maravilhado, tem uma ponta de orgulho em dividir com os outros a visão dos trajes de noite da primeira loja que abriu; os incríveis aparelhos eletrônicos daquela segunda loja; estas jóias preciosas da vitrine em frente. O portão se abre, deixo para trás o universo mágico do descobridor de sonhos, e entro no mundo insensato dos memorandos, telefonemas e papéis.

Machado de Assis - Necrológios

NECROLÓGIOS

"O Brasil acaba de perder o filho que mais alto o elevou no mundo das letras. A Morte, sempre impecável era a sua triste missão, ceifou ontem a vida preciosa de Machado de Assis - o Mestre querido e respeitado da literatura pátria. (...) Machado de Assis nasceu inteiramente pobre e foi no seio da pobreza que ele se criou e deu os primeiros passos na sua vida. A struggle for life tornou-o artista e foi na qualidade de simples compositor que ele entrou um dia para as oficinas da Imprensa Nacional. mas dotado de um invejável talento e de uma vasta erudição, - espírito observador por excelência - Machado de Assis não tardou a revelar-se o escritor primoroso, cujo passamento acaba de trazer a dor e o luto a todo o país. (...) Morreu Machado de Assis. À hora em que escrevo esta frase, nesta mesma seção, em que há apenas algumas semanas, acusava a recepção de Memorial de Ayres, o livro de afeto, que lhe prolongou a vida, ele jaz embalsamado, no salão da Academia de Letras, aguardando a hora solene que todos os que, nesta terra, prezam e amam as manifestações de espírito, lhe vão render as últimas e supremas homenagens, que restritamente, lhe são devidas. Machado de Assis atravessou três gerações literárias e por todas elas foi considerado o que era realmente: um mestre desta difícil arte de escrever. Em face de seu corpo inanimado, pode-se lhe fazer a justiça plena; e essa justiça deve-se traduzir num apoteose. Transformando os seus funerais numa glorificação, o povo brasileiro não rende apenas o preito devido ao pensamento e à arte, glorifica-se a si mesmo, porque é, de fato, uma glória que constituamos o meio superior, indispensável à existência, ao desabrochamento, à evolução de um espírito tão primoroso, como o do autor do Braz Cubas. (...)" 

(A Imprensa, 30 de setembro de 1908)

"Não é uma simples perda. A morte de Machado de Assis é uma catástrofe no mundo das letras nacionais. Era impossível de resto guardar por mais tempo uma vida que se prendia à nossa por um fio delgado. Machado de Assis desde que se foi a sua companheira de tantos anos, já não vivia senão a vida da saudade, a vida da recordação, daquela que fora o conforto da sua existência, o arrimo da sua velhice e a suprema inspiradora de toda a sua generosa obra literária. O desaparecimento do Mestre é tanto mais irreparável quando ele cai de uma altura literária à qual ninguém entre nós atingiu antes dele. (...) Porque Machado de Assis não foi nenhum filho da fortuna, ele teve de lutar incessantemente contra todos os obstáculos da vida. Não gozava saúde, não tinha meios para se desvencilhar das amarguras em que seu espírito soçobraria de certo, se ele não tivesse a couraça de uma energia que ninguém adivinhava na serenidade e na doçura daquela alma de criança. Entrou lutando e tombou vencido pela dor e pela saudade. (...) Era poeta, publicista, cronista, conteur. O seu nome em literatura era Legião. Valia por um pelotão de estrategistas. Era mais forte do que uma guarda de escolhidos. (...)  Descrevia coisas ordinárias extraordinariamente bem. O estilo é o homem. Na naturalidade da obra do Mestre descobre-se sem esforço a simplicidade do homem na sua vida pública e particular. E era esse o maior encanto dos muitos amigos do pranteado morto. (...) Daqui a muitos anos, talvez há muitos séculos, as gerações que substituírem as que se forem mergulhando para o outro lado do mundo terreno, hão de ir buscar à obra do Mestre ensinamentos preciosos. Porque os gênios não desaparecem; transformam-se apenas em anjos de guarda das nações de que foram figuras precípuas. (...)" 

(O Século, 29 de setembro de 1908)

"O homem que hoje desapareceu de entre os vivos não era apenas um fino cultor das letras, um romancista de nomeada, um conteur exímio, um cronista encantador - era acima de tudo isso o mais alto, mais delicado e pertinaz amigo da literatura nacional. Consciente de seu valor, do prestígio de seu nome na arte Machado de Assis não se isolava na legendária torre de marfim dos orgulhosos e misantropos, o que ele buscava não era a glória e o respeito para o seu nome unicamente, o que ele queria ver aureolada de veneração, reconhecida como uma força sublime, como um fator da grandeza nacional era a literatura, a profissão de homem de letras, que amava acima de todos e cultivava com fervor de sacerdote. (...) Daí a sua preocupação tão ardente, tão fanática, que foi quase ingênua, de formar academias, criar um núcleo que atraísse o olhar de todo um povo, fundar a aristocracia das letras. (...) O grande escritor Machado de Assis sofria há muito tempo e veio a piorar rapidamente depois da morte de sua idolatrada esposa. Domingo último mais se afirmaram os padecimentos até que hoje às 3,45 da madrugada, a arteriosclerose teve o seu termo final. (...) Foi agraciado com os títulos de cavalheiro e oficial da Ordem da Rosa e pelo seu valor literário mereceu a eleição à presidência da Academia Brasileira de Letras."

(A Tribuna, 29 de setembro de 1908)

"A literatura nacional acaba de sofrer, com a morte de Machado de Assis, seu chefe incontestado, uma perda verdadeiramente irreparável, e que não podia ser maior nem mais dolorosa. Sem falar nos seus dotes de imaginação, que eram extraordinários, Machado de Assis foi um dos escritores mais puros da língua portuguesa no século XIX e o seu nome será repetido a par de Garrett, Camillo e outros mestres ilustres. Favorecido por uma cultura literária formidável e pela faculdade do trabalho abundante e fácil, Machado de Assis deixa uma obra considerável, a maior, talvez, que ainda saiu da pena de um homem de letras brasileiro. Na poesia, que foi a primeira manifestação do seu talento, no romance, no teatro, no conto, na fantasia, na crônica, em tudo ele brilhou intensamente; nenhum trabalho, ainda o mais insignificante, lhe saiu das mãos que não tivesse o cunho do definitivo, do bem acabado. (...) Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839 e era filho legítimo do operário Francisco José de Assis e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis. Os seus estudos foram irregulares. Ao deixar a escola de primeiras letras, sabendo apenas ler e escrever, tratou de instruir-se a si mesmo, sem professores nem conselheiros, e assim adquiriu todos os conhecimentos indispensáveis à carreira com que devia ilustrar o seu nome. (...) Em 1858, Machado de Assis abraçou a arte tipográfica, mas no ano seguinte abandonou-a, para ser revisor de provas da famosa casa de Paula Brito e do Correio Mercantil. Em 25 de março de 1860 encetou a sua vida jornalística, ao lado de Saldanha Marinho, Quintino Bocayuva e César Muzio, no Diário do Rio de Janeiro. (...) Em 1867 o governo imperial agraciou-o com o grau de cavalheiro da Ordem da Rosa, por serviços prestados às letras brasileiras; em 1888, a princesa D. Isabel elevou-o a oficial da mesma ordem; mas a honra maior que ele recebeu em vida, foi a presidência da Academia Brasileira, que os seus confrades lhe deram por aclamação. Em 1869 casou-se Machado de Assis com D. Carolina Augusta Xavier de Novaes, irmã de Faustino Xavier de Novaes, a qual faleceu há três anos. A viuvez foi para o grande escritor um golpe terrível, que o aniquilou, agravando os seus antigos padecimentos. Pode-se dizer que, depois da morte da querida esposa, Machado de Assis não viveu mais: morria aos poucos. Sozinho no mundo, sem filhos, sem parentes, não resistiu à perda da extremosa companheira de tantos anos. (...)"

(O Paiz, 30 de setembro de 1908)

"Morreu Machado de Assis. Perde a nossa língua um de seus mais vigorosos e profundos escritores. Com ele desaparece a mais leve e a mais encantadora das nossas prosas, a mais completa e a mais perfeita das organizações literárias que possuímos. Poeta, romancista, dramaturgo e jornalista, era Machado de Assis o tipo culminante e o mais simpático do nosso mundo de letras. Sua perda é irreparável. Num país como o nosso, já tão pobre de espíritos brilhantes como o seu, esse desaparecimento é mais importante do que parece. (...) Não mais nos será dado ler novos primores da pena que escreveu Quincas Borba e Dom Casmurro. Machado de Assis desaparece e embora cubram-lhe a tumba de flores e a sua memória da mais profunda saudade, do seu estro só nos restará a lembrança que nos seus livros, no entanto, palpitará sempre luminosa e forte como o sol. (...)  Quem entrasse, às 4 horas, no Guarnier havia de ver, invariavelmente, um homem pequeno, franzino, de barba curta e quase branca, sempre numa das cadeiras que correm a fila das brochuras francesas, entre as pernas um indefectível guarda-chuva. Tinha um ar cansado, se bem que a fisionomia lhe sorrisse todas as vezes que um chapéu se erguesse ou uma mão apertasse a sua, sempre com grande interesse e respeito. Era Machado de Assis. Fechada a sua repartição, subia ele Ouvidor acima, caminho do Guarnier, àquela mesma hora, sempre com o seu passo rítmico e nervoso de quem vai ao cumprimento de um dever sagrado. (...) E velhos e novos, acadêmicos e poetas que surgissem, óculos e cabeleiras, cercavam-no com interesse, com curiosidade ou admiração. De toda a grande nave da livraria, era a figura, a mais vista e a mais admirada. (...)"

(Correio da Manhã, 30 de setembro de 1908)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Silviano Santiago - Prazer da Leitura

PRAZER DA LEITURA, DESPRAZER DA VIAGEM

Silviano Santiago

Leitura e viagem são pares inseparáveis, às vezes desagradavelmente contraditórios. A leitura é sempre uma viagem simbólica. Página após página, nossos olhos nos introduzem num universo até então nunca vislumbrado. Entramos nos vários volumes duma enciclopédia pela porta estreita de historietas corriqueiras, banais, sem grandes heróis e grandes feitos. De repente, - tomemos este exemplo – abrimos um livro e estamos em Londres, caminhando pelos seus boulevards e ruas, investigando panoramas dentro dos parques, descobrindo os rigores do inverno e o sentido do cachecol e das luvas. Estamos freqüentando cafés e restaurantes cujos nomes até então nos eram completa ou vagamente desconhecidos. Participamos de conversas íntimas ou amorosas, experimentamos comidas e licores cujos nomes nos inebriam e nos fazem sonhar acordados. Podemos entrara numa casa de família pelas mãos de Katherine Mansfield e conhecer os detalhes das difíceis relações cotidianas. Brigas, desentendimentos, ciúmes, ódios, intrigas, invejas, olhares, amores, sentimentos inacabados. Podemos entrar num escritório em companhia de E. M. Forster e dar-nos conta das complexas relações humanas e trabalhistas numa sociedade de castas, situação humana tão intrigante quanto a criada pelas reclamações feitas pelo pai à hora da refeição e que entraram por um ouvido e saíram pelo outro.

Fechamos o livro com um conhecimento estranho e familiar do  desconhecido. Um cineminha continua a funcionar na memória, desparafusando certezas e profundidades. Imagens estranhas e íntimas. Chocantes e naturais. Tocamos com o dedo a realidade vista através das lentes de projeção e ganhamos o sono.

Para o adolescente, a leitura acaba sendo um prenúncio da viagem que fará, ou nunca fará. Depende. Caso seja um ávido leitor de romances, terá conhecido na intimidade das aventuras rocambolescas não apenas outras cidades do seu próprio país, como outras cidades do mundo. Terá tido acesso a vários pontos de vista que descrevem a cidade que lhe apetece como uma obsessão. Terá lido variados autores que a descrevem e a fazem funcionar com as voltas e as velocidades programadas das hélices de um liquidificador. Terá, ao final de algum tempo, um panorama mais rico daquela cidade que do bairro onde nasceu e vive.

Às vezes indisfarçável, há um sentido de poder sobre as coisas e os seres humanos, sobre o mundo, que advém das múltiplas leituras. O universo cabe inteiro numa bolinha redonda chamada cabeça e é movimentado pelo ditador que nela mora. As pequenas e mesquinhas aventuras do cotidiano familiar e escolar ganham a dimensão do ridículo. As histórias contadas pelos companheiros de repente são esvaziadas pela imaginação que optou pela curiosidade que transgride os limites dos quatro cantos da cidade. Você se tornou melancólico e altivo. Você foi de dentro e agora se alimenta lá fora. Já não consegue enxergar o que lhe cerca com os mesmos cindo sentidos dos que lhe são próximos ou pares. Nada lhe sobra, tudo lhe falta. Faltam-lhe odores, sabores, peles, paisagens, cores, tudo o que te pertence por direito de leitura e que só pode ser passageiramente satisfeito se você se adentrar por outra leitura.

Um livro reclama um outro, como um cigarro, um copo de uísque, ou como uma droga. Não há lógica contra o vício. Só a força de vontade entorpece o vício. E aquela, pobre coitada.

Finalmente, você se preparou para viver experiências que são tão extraordinárias quanto as ocasionadas vicariamente pela leitura. Você está onde sonhou estar. Tudo que era íntimo readquire distância à medida que se aproxima. Você desconhece o que conhece. Sente de maneira aguda um aperto no coração, uma retorcida sensação de déjà vu nos olhos. Não existe maior decepção para você que a experimentada nos primeiros passos dados na cidade estrangeira que você conhece tanto de leitura.

Uma imensa e infinita placa de vidro baixa como num filme de ficção científica entre os seus olhos e a realidade ambiente. A placa recobre como gigantescas bolhas os lugares, os seres e as coisas, silenciando-os seja pela linguagem dos lábios, seja pela falta de calor humano.

Não há viagem simbólica, ou seja, leitura, que prepare para a desilusão da viagem. Pelo contrário. Maior o número de leituras, maior a decepção. Por sorte, há o entusiasmo acumulado durante a inércia da leitura. Ele é o grande poço de onde se extrai, nos momentos de maior desalento, a água benta que reanima, fortalecendo os músculos e a sensibilidade pelo sentido da fraternidade universal.

O entusiasmo força você a entrar onde já não tem mais prazer em entrar. Uma outra e definitiva vez, por que não? Preferia ter ficado de fora, atrás da bolha extraterrestre, apreciando as coisas e os seres como os apreciava passando as páginas do livro. Para quê? Você já viu o que vê sem ter visto. Você vê já tendo entrevisto. O entusiasmo força. Você tenta se refugiar no livro, abrigo de sua desesperança. Mas o livro não existe mais, esquecido que ficou numa estante perdida no tempo e no espaço. Você não tem alternativa. Você entra no restaurante. O paladar rechaça as iguarias. O olfato estranha os delicados perfumes. As palavras são poucas e pobres para dar conta do ambiente que te cerca e alimentava a sua imaginação provinciana.

“Tudo aqui tem um nome” – ecoa-lhe na memória uma passagem do livro. A graça está em conhecer cada coisa pelo seu próprio nome. Coce troca o nome das coisas, despertando o riso dos personagens. Para pedir um chope, você deve ter usado uma palavra livresca, há muito fora de circulação. A vergonha está em desconhecer o nome atual. O nariz respinga a rinite que veio com o vento e o frio. Nada é tão fácil de ser acuado contra a parede quanto um coração em chamas no estrangeiro. Tão fácil trespassá-lo com uma espada e ficar colhendo as gotas de sangue como um seringueiro solitário na floresta amazônica. Depois de anos e anos de segredos verdades com carinho de donzela, você tem, aberta no peito, uma ferida cujos lábios dizem e repetem: “Eu não sou turista!”. E mais você grita, mais a ferida cicatriza em marcha de sobrevivência.

Talvez seja por essa razão que grandes viajantes simbólicos, como o poeta Carlos Drummond de Andrade, pouco ou quase nunca pisaram solo estrangeiro. Sabemos de viagens suas somente até a Argentina. Preferia as asas leves, infantis e inflamadas da sua coleção de livros escritos por Jules Verne.

É uma hipótese que acalenta o prazer da leitura e disfarça o desprazer da viagem.

(JB, 31/10/1998)

Simon Schwartzman - Tempos de Capanema

TEMPOS DE CAPANEMA


Simon Schwartzman
Helena Maria Bousquet Bomeny
Vanda Maria Ribeiro Costa

Introdução à segunda edição

Gustavo Capanema faria cem anos em agosto de 2000: tempo de virada do século, de quinhentos anos do Brasil. É um momento de reexame do passado e de indagação sobre o futuro, do qual a reedição deste livro faz parte: por que somos como somos? Como seremos daqui por diante? Quanto de nosso futuro está determinado ou contido no nosso passado?

Este reexame não decorre de uma simples efeméride, seja o centenário de Capanema, os cinco séculos do Brasil, ou a chegada do novo milênio. A imagem do fim do século XX foi a queda do muro de Berlim em 1989, que não só marcou o fim do mundo polarizado da guerra fria, como também simbolizou a implosão de todo um universo de concepções e interpretações a respeito do passado e do futuro de nossa vida em sociedade, sem que tenhamos ainda clareza sobre o que virá em seu lugar. Também no Brasil estamos entrando em um novo tempo, não só pela influência do que acontece além das fronteiras, mas também pelo esforço de deixar para trás um século de alternâncias entre experiências autoritárias que se frustram e aberturas democráticas que não atingem a plenitude, e que não têm permitido que o país atinja os padrões mínimos de educação, justiça social e produção de riqueza que compatíveis com o mundo moderno.

Publicado em 1984, como o primeiro resultado das pesquisas no arquivo Gustavo Capanema, depositado no CPDOC em 1980, este livro já antecipava um dos temas importantes deste reexame, o do relacionamento entre os intelectuais e o autoritarismo político.

Os anos Capanema ficariam na lembrança como um momento da história republicana brasileira em que política, educação e cultura estiveram associadas de forma singular e notável, e os arquivos revelaram um paradoxo que exigia um exercício cuidadoso de análise e interpretação. Aos decretos e procedimentos afinados com a política autoritária do Estado Novo, sobrepunham-se falas de uma correspondência privada e pessoal de uma intelectualidade de todos nós conhecida, identificada com as causas sociais e de modernização cultural, e admirada e cultivada como patrimônio cultural e afetivo do país. Entre esses intelectuais e artistas estavam Carlos Drummond de Andrade, Alceu Amoroso Lima, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Heitor Villa Lobos, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Gilberto Freyre, Cândido Portinari, além dos educadores que marcariam a história brasileira como pioneiros e formuladores dos projetos políticos e institucionais que deram vida ao debate educacional no país desde os anos 1920, como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e o próprio Francisco Campos, envolvido com as reformas educacionais em Minas Gerais desde os anos 1920 e primeiro ministro a ocupar a pasta da Educação em 1930.

Como entender que figuras tão ilustres, e de horizontes aparentemente tão abertos, convivessem com políticas de cunho autoritário e repressor, como o fechamento da Universidade do Distrito Federal em 1939, a criação do movimento Juventude Brasileira, de inspiração inequívoca no fascismo em voga na Europa dos anos 1930, e ainda a perseguição aos intelectuais de pensamento liberal, identificados pelas lideranças conservadoras do Estado com aos movimentos de esquerda? Por um lado, como os arquivos revelam, particularmente na correspondência de Carlos Drummond e Mário de Andrade, esta não era uma convivência tranqüila, mas, ao contrário, cheia de tensões e ansiedades. Mas, por outro, a idéia de que os regimes fortes de esquerda e de direita poderiam abrir caminho para um futuro melhor sempre atraiu intelectuais brilhantes em todo o mundo, de Leon Trotsky a Martin Heidegger, passando por André Malraux e Maurice Merleau-Ponty, sem falar em literatos como Pablo Neruda, Miguel Ángel Asturias e Jorge Amado, - e o Brasil não seria exceção. Essa proximidade não passaria sem deixar seqüelas importantes, entre as quais as grandes dificuldades que tantos entre nossos intelectuais encontrariam para entender e defender, ao lado dos direitos sociais, os valores do pluralismo, dos direitos individuais e da ordem jurídica democrática.

Faz parte também deste reexame um novo olhar para os temas da educação e da cultura. É curioso como, hoje, esses temas parecem recuperar a importância que tinham nos anos 1920 e 1930, quando os debates sobre a educação e a cultura brasileiras mobilizavam os intelectuais, incendiavam as disputas entre leigos e católicos e ocupavam espaços nos jornais.

Naqueles anos, quando ainda não se falava de subdesenvolvimento e dependência, e sim de atraso e civilização, acreditava-se que, pela educação, se formariam o caráter moral e a competência profissional dos cidadãos, e que isto determinaria o futuro da Nação. Os movimentos e a disputa pela educação, e sobretudo seu controle pelo Estado ou pela Igreja, eram vividos como uma luta pela própria alma do país. Leigos e católicos concordavam que, sem educação, essa alma não existiria. Ela precisava ser construída, tirando-se o país da barbárie, do atraso e da indigência moral. O que se disputava era quem cuidaria da formação da criança que aprendia suas primeiras letras, o que fatalmente a destinaria para o Bem ou para o Mal, segundo a visão de mundo de cada um.

Como este livro revela, a educação pública, que até os anos 1930 praticamente não existia, começou a ganhar forma nos tempos de Capanema, e cresceu deste então de forma lenta e precária. A Constituição de 1946 previa a votação uma "Lei de Diretrizes e Bases da Educação" que deveria dar um novo sentido e formato à educação do país. O Brasil não conhecera, no entanto, outra maneira de lidar com a educação além da que fora criada no governo Vargas, e a presença de Gustavo Capanema no Congresso, depois de longa permanência no Ministério da Educação, inibiu as discussões que tomavam como ponto de partida o projeto elaborado sob sua gestão no período de 1934 a 1945. Em pauta desde 1948, por iniciativa de Clemente Mariani, ministro da Educação de Dutra, a lei só seria votada em 1961, em meio a um debate que reproduzia, até mesmo nos personagens, as disputas de 30 anos antes. A principal diferença era que, nos anos 30, católicos e leigos disputavam o controle da educação pública; nos anos 1960, a disputa aparecia como um confronto entre a educação pública, que se pretendia universal e gratuita, a proporcionada pelo Estado, e a educação privada, defendida como um direito das famílias, às quais o setor público deveria apoiar. Anísio Teixeira e o grupo da Escola Nova de um lado; Carlos Lacerda e Dom Hélder Câmara de outro, com a Igreja Católica defendendo a primazia dos direitos da família e os interesses das escolas católicas, que respondiam por parcela significativa do ensino privado oferecido no país. No final dos anos 1950, precisamente em 1959, Fernando de Azevedo redige outro Manifesto à Nação, "Uma vez mais convocados", em alusão ao "Manifesto dos Pioneiros da Educação" lançado em 1932.

Poucos se lembram do resultado dessa disputa, que terminou, nominalmente pelo menos, com a vitória da corrente "privatista," liderada por Carlos Lacerda. Havia o temor de que a nova legislação, ao reconhecer a liberdade de escolha das famílias para matricular seus filhos em escolas privadas, abrisse caminho para a canalização dos recursos públicos para estas escolas, em detrimento da educação pública e leiga. Na prática, o Estado continuou com a responsabilidade da educação pública, que nunca chegou a desempenhar de forma plena. As famílias de classe média e alta assumiram, como sempre fizeram, a responsabilidade pela educação de seus filhos, preparando-os para as melhores escolas públicas secundárias ou superiores ou colocando-os em escolas particulares, a maioria dirigida por religiosos. A Igreja Católica, que nos anos 1930 havia tentado assumir o controle da educação pública do país, limitava-se agora à administração de um conjunto restrito de escolas que, quem sabe, ainda poderiam cuidar da alma das elites.

A partir dos anos 1960, os grandes temas nacionais passaram a ser outros. O que preocupava, agora, eram o desenvolvimento e a industrialização, a dependência e o nacionalismo, as ameaças do populismo e o autoritarismo que acabou se implantando novamente e polarizando o país por duas décadas, deixando como herança as grandes questões da distribuição da renda, da inflação, da dívida externa e da estagnação econômica. Se perguntados, todos concordariam que a educação era importante, assim como é importante o amor materno, e que sem eles nada se poderia fazer. Mas poucos tinham idéias próprias a respeito do que fazer, na prática, com a educação; era algo a ser visto quando os outros problemas tivessem sido resolvidos.

Enquanto isso, a educação continuava a se expandir, impulsionada pelo crescimento das cidades e pela expansão do setor público, dentro das linhas mestras desenhadas nos anos 1930. Para os políticos, em todos os níveis, os sistemas educacionais se tornaram moedas de troca importantes, que permitiam distribuir empregos, contratar serviços e intercambiar favores. Ao mesmo tempo, formou-se toda uma comunidade de professores e professoras, pedagogos, especialistas, funcionários e empresários da educação que faziam congressos, disputavam verbas, continuavam a discutir a importância, os direitos e os espaços da educação pública, privada e religiosa. Esses profissionais se preparavam para reproduzir, depois da Constituição de 1988, os mesmos debates dos anos 1930 e 1960, que deveriam marcar a segunda Lei de Diretrizes e Bases da Educação, idealizada para um novo tempo que chegou a se chamar, por alguns anos, de Nova República. Foi uma batalha que não houve: a Lei de Diretrizes e Bases aprovada pelo Congresso Nacional em 1996 não foi o resultado de um grande debate nacional, e sim da adoção de um substitutivo de última hora apresentado pelo então senador Darcy Ribeiro, que havia estado nas trincheiras da escola pública nos anos 1950 e 1960, mas que buscava então olhar para a educação com outros olhos.

A razão deste anticlímax talvez tenha sido que, paradoxalmente, na medida em que a educação crescia, o tema da educação perdia sentido para grande parte dos próprios educadores. No passado, na tradição dos conceitos pedagógicos da Escola Nova, trazidos por Anísio Teixeira, e das pesquisas educacionais, iniciadas por Lourenço Filho, os educadores se preocupavam com coisas tais como com técnicas pedagógicas, conteúdos dos currículos, psicologia da aprendizagem dos alunos. Professores e professoras acreditavam que tinham uma missão importante a desempenhar e se frustravam quando percebiam que se estavam proletarizando, que não recebiam o reconhecimento social que esperavam, que as escolas contavam com muito poucos recursos e nenhuma autonomia de ação, e que as crianças chegavam a elas, cada vez mais, sem as condições mínimas para um aprendizado satisfatório. Os temas pedagógicos pareciam secundários e irrelevantes, e as questões que passaram a dominar os cursos, congressos, movimentos e publicações dos educadores não eram as da educação enquanto tal, mas questões de natureza sindical - salários, sobretudo - ou política e econômica. Assim, nos anos 1990, passou-se a tratar de temas como os direitos sociais, a globalização e o neoliberalismo, que se traduziam quase que diretamente em opções político-partidárias e eleitorais. Com isso, os educadores se transformaram, de guardiões da alma nacional, e um grupo de pressão como tantos outros, e perderam a capacidade de galvanizar a atenção e o interesse do país.

E no entanto, é justamente neste momento que a educação volta a ser percebida como tendo um papel importante e central. Já não se discute tanto a alma do país - se cívica, leiga ou católica -, e sim o desempenho e sobrevivência do corpo. Como nos anos 1920, a educação deixa de ser tratada como conseqüência e começa a ser vista como causa. Não são mais os educadores, e sim os economistas, muito mais em evidência, que argumentam que a economia só cresce quando há investimento em recursos humanos, e que as desigualdades sociais se devem, sobretudo, às desigualdades de oportunidades educacionais. Internacionalmente, a bandeira da educação deixa de ser monopólio da UNESCO e passa a ser dividida com outras agências como o Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, UNICEF. Empresários que antes apoiavam a educação, no máximo, como caridade, e viviam na prática dos preços baixos dos produtos fabricados com mão de obra desqualificada, agora buscam treinar melhor seus empregados e concordam em contribuir para que as escolas formem melhor seus alunos, e lhes forneçam mão de obra mais qualificada. Esse interesse renovado pela educação chega também aos políticos, que falam de suas realizações e promessas na área da educação para ganhar votos e, quando eleitos, já começam a não usar os ministérios e secretarias de educação como moedas partidárias nas negociações de apoios e de votos.

A grande questão da educação brasileira, hoje, é como transformar o antigo sistema montado pelo Ministério da Educação nos anos 1930, e conservado sem mudanças fundamentais ao longo de quase 60 anos, em um sistema moderno, eficiente, abrangente e adaptado aos novos tempos. Este livro ajuda a entender parte do problema, que é o da origem de muitas práticas que hoje podem nos parecer óbvias e naturais, mas que foram opções de determinada época e momento, nunca mais revistas. Coisas como a centralização administrativa, que faz das secretarias de educação de estados como São Paulo e Minas Gerais, com centenas de milhares de funcionários, estruturas quase impossíveis de administrar; a prioridade dada aos títulos e diplomas sobre os conteúdos; a crença no poder dos currículos definidos no papel e controlados por sistemas burocráticos e cartoriais; a existência inquestionada de instituições vetustas como os antigos conselhos oficiais de educação; a predominância do formalismo e do ritualismo nos processos pedagógicos; e o isolamento que acabou ocorrendo entre o mundo da educação e o mundo real, esvaziando o sentido do primeiro e limitando seus recursos. As novas palavras de ordem são envolvimento da comunidade com as escolas, descentralização, autonomia, iniciativa local, avaliação, uso de novas tecnologias, ênfase nos conteúdos. Os temas da alma ressurgem com novas roupagens, como a preocupação com o meio ambiente, o vínculo das escolas com as comunidades, e os direitos e deveres da cidadania. É uma revolução em andamento, que vem ocorrendo tanto no nível federal como em muitos estados e municípios, e que já se reflete nos grandes números, com a explosão da educação média e o aumento nos anos de escolaridade das crianças, mas que ainda está longe de adquirir forma e se completar.

A cultura, nos tempos de Capanema, também era vista como campo de construção da alma nacional. Nos anos 1920, o modernismo havia vislumbrado a possibilidade de construção de um país mais autêntico, menos mimético, e essa busca do "Brasil Real" na literatura, na pintura e na música se mesclava com a busca de um "Brasil real" na política e na vida em sociedade, onde o formalismo da república oligárquica pudesse ser substituído pela construção de um Estado nacional forte e voltado para o progresso e para o futuro. Essa aproximação entre a busca da autenticidade e o autoritarismo político era dominante naqueles anos, em que as democracias pareciam condenadas ao fracasso, e os autoritarismos de esquerda e de direita se confundiam em nome dos valores, supostamente mais altos, da cultura e da nacionalidade. Capanema, inspirado por Francisco Campos, apoiado em Carlos Drummond e Alceu Amoroso Lima, procura construir seu projeto cultural em cima dessa ambigüidade. Por um lado, havia que valorizar os homens de letras, as artes, e criar para isto um mecenato estatal. Por outro, havia que produzir os símbolos culturais do Estado Novo, que substituíssem a iconografia da República, que mal conseguira desmontar a hagiologia do Império. Os símbolos do novo Brasil buscariam suas raízes nos mitos da cultura indígena e nas epopéias dos bandeirantes; os monumentos do passado deveriam ser recuperados e preservados na memória nacional; e o novo país se consubstanciaria nas paradas cívicas, nos grandes projetos arquitetônicos de Piacentini e Lúcio Costa, nas iconografias nativistas de Portinari, e nos grandes concertos orfeônicos de Villa Lobos. As correspondências de Drummond, Mário de Andrade e Portinari, neste livro, mostram o lado escuro deste projeto ambicioso, que não seria suficiente, no entanto, para desfazer a imagem que ficou dos tempos de Capanema como uma época de ouro do mecenato cultural.

A principal realização do Estado Novo na área da cultura talvez tenha sido a implantação de um sistema de recuperação e preservação do patrimônio artístico e cultural do país, que daria testemunho do passado mais autêntico e da identidade nacional que se buscava construir. Tão forte foi a atmosfera que envolveu a política de preservação do patrimônio que, até hoje, aquele período é lembrado como a "idade de ouro" do patrimônio brasileiro. Era o projeto ambicioso de organização e sistematização da cultura brasileira em todas as suas manifestações que entusiasmava Mário de Andrade e Rodrigo Mello Franco de Andrade e que encontraria outro breve momento de brilho nos anos 1970, sob a liderança do designer Aloísio Magalhães.

Para a cultura, como para a educação, cabe indagar em que medida os pressupostos e os formatos institucionais criados naqueles tempos ainda subsistem, e se deveriam ser recuperados ou substituídos por outros supostos e instituições. A "cultura" do antigo Ministério da Educação e Cultura se transformou hoje em um Ministério próprio, que já não tem a missão de construir os símbolos e a mitologia da nacionalidade e se dedica, sobretudo, a manter ainda viva a chama do mecenato, mas sem um objetivo claro e definido. Em parte, trata-se de recuperar e reativar as tradições e costumes de populações empobrecidas e marginalizadas, não para construir a partir daí uma nova Cultura nacional, como pensaria talvez Mário de Andrade, mas simplesmente, para recuperar o sentido de identidade e respeito próprio dessas populações.

A rotina do patrimônio, sucessivamente identificada em uma nova sigla que é definida em uma seção do Ministério da Cultura, é hoje mais uma rotina burocrática e funcional do que a expressão de idéias e projetos ou a atualização de dinâmicas mais sintonizadas com o novo perfil de sociedade metropolitana e da informação que a sociedade brasileira vem adquirindo. A recuperação e preservação do patrimônio histórico são, cada vez mais, iniciativas associadas à indústria do turismo, e não à preocupação com a recuperação da memória nacional. Existem mecanismos para o financiamento de produtos culturais para o mercado de consumo - sobretudo filmes e teatro - cujo principal propósito parece ser sua própria existência como indústria cultural, e não mais o estímulo ao fortalecimento de conteúdos culturais específicos.

Há quem lamente esta pulverização e comercialização da cultura, e sinta falta dos projetos ambiciosos, ainda que frustrados, do passado. Há quem acredite, ao contrário, que existe uma nova cultura em formação, muito mais fragmentada e complexa do que a dos projetos do passado, combinando a vida local com o mundo global, a língua nacional com a língua franca das comunicações, o mundo das idéias e o mundo do trabalho, e dando prioridade a valores individuais e interpessoais, como os da competência, responsabilidade, criatividade, solidariedade e pluralismo, e não mais aos valores do Estado, da Nação e da Cultura.

Voltar aos tempos de Capanema é voltar, de alguma forma, às matrizes de valores, idéias e instituições que ainda perduram em nosso inconsciente, encarnados em nossas leis e instituições, e que nos impedem de saber se realmente ainda as queremos, ou se devemos procurar outros rumos e alternativas.

Bastos Tigre - Sintaxe feminina

SINTAXE FEMININA

Bastos Tigre


Leio: "Meu bem não passa-se um só dia
Que de você não lembre-me"... Ora dá-se!
Mas que terrível idiossincrasia!
Este anjo tem as regras de sintaxe!

Continuo: "Em ti penso noite e dia...
Se como eu amo a ti, você me amasse!
"Não! É demais! Com bruta grosseria
A gramática insulta em plena face!

Respondo: "Sofres? Sofrerei contigo...
Por que razão te ralas e consomes?
Não vês em mim teu dedicado amigo?

Jamais, assim, por teu algoz me tomes!
Tu me colocas mal! Fazes comigo

O mesmo que fizeste com os pronomes!..

João Ubaldo Viera, Titãs - Epitáfio

EPITÁFIO

João Ubaldo Viera

Titãs


Devia ter amado mais, ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais e até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado as pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar

Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...

Devia ter complicado menos
Trabalhado menos

Tobias Barreto - Dize-me sempre

DIZE-ME SEMPRE



Tobias Barreto


Que te custa uma frase, um consolo
para o meu coração, que padece,
como afago pisar sobre a juba
do leão, que a teus pés adormece?

Que te custa enganar-me falando,
se a tua alma por mim não suspira?
Quero ouvir-te dizer que me amas,
inda mesmo que seja mentira!...

José Mário Pereira - O fenômeno Merquior

O FENÔMENO MERQUIOR

José Mário Pereira

Ninguém mais habilitado para escrever um depoimento limpo e exato sobre José Guilherme Merquior do que o jornalista (e editor da Topbooks) José Mário Pereira, que foi por muitos anos amigo e colaborador do grande crítico e filósofo liberal. Depoimento, na verdade, mais que limpo e exato: comovente, como bem ressaltou Wilson Martins num de seus rodapés semanais. Escrito para uma obra coletiva organizada por Alberto Costa e Silva (O Itamarati na cultura brasileira, Brasília, Instituto Rio Branco, 2001), “O fenômeno Merquior” não só desfaz um punhado de lendas maldosas criadas pela incansável máquina de difamação esquerdista, mas mostra como a incrível mesquinharia ambiente buscou por todos os meios sufocar a expressão de uma altíssima e nobre inteligência, que sempre retribuiu o mal com o bem. -- O. de C.

A mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista — irreverente, agudo, sábio", na feliz expressão de Eduardo Portella, José Guilherme Merquior espantava pela versatilidade e capacidade de metabolizar idéias. No Brasil do século XX sua obra foi um marco, e sua morte prematura, aos 49 anos, no dia 7 de janeiro de 1991, um desastre incontornável para a cultura brasileira, que dele ainda tinha muito a receber. Identificado quase sempre como polemista — o que, em se tratando de Merquior, é redutor — a riqueza heurística de sua produção intelectual está ainda por ser enfrentada sem a leviandade e a preguiça mental contra as quais tanto se bateu.

Por muitos meses hesitei em escrever estas notas. Somente a paciência e a compreensão do poeta e historiador Alberto da Costa e Silva, o organizador deste volume, conseguiram pôr a nocaute meu quase pânico em depor sobre o amigo cuja vida, no seu momento de maior esplendor criativo, acompanhei de perto. O fato é que sua morte abrupta chocou a todos, em especial os que esperávamos poder desfrutar de sua verve e inteligência por muitos anos. Imagino que a seus leitores também. A idéia de condensar num texto sua trajetória intelectual e humana, e também o drama dos dias finais, que ele encarou com estoicismo, não é uma fácil tarefa.

Merquior completaria agora em abril 60 anos; não obstante, continua a ser denegrido por muitos que não o conheceram nem o leram. Não poderia eximir-me, portanto, de dar um testemunho e fornecer alguns elementos para um retrato da maior figura intelectual de sua geração, diplomata exemplar e ser humano inesquecível. Espero, pelo menos, desenhar um esboço, pálido que seja, do que José Guilherme Merquior representou como personalidade e presença vital no mundo da cultura brasileira e internacional.

Nascido sob o signo de Touro, em 22 de abril de 1941, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, filho de Maria Alves Merquior (D. Belinha) e Danilo Merquior, advogado, José Guilherme era irmão mais velho de Carlos Augusto, Marco Aurélio e Maria Cristina. A família morava então na rua Dr. Satamini, 94, apto. 402, perto do Colégio Lafayette, onde ele estudou e, desde cedo, impressionou pela inteligência e precocidade. Da primeira viagem à Europa, ainda adolescente, trouxe um busto de Voltaire — tão pesado que seu transporte se transformou num pesadelo familiar. E um dos primeiros presentes que ganhou do pai foi a abertura de uma conta sem limite na livraria Leonardo da Vinci, de D. Vanna Piracini, no centro do Rio.

Na universidade cursou Direito, mas entre os professores a quem mais se afeiçoou estão Dirce Cortês Riedel, de Literatura, e Antonio Gomes Penna, de Psicologia. À primeira dedicou seu livro sobre Drummond, lançado na década de 70, afirmando que ela "despertou em mim o amor da literatura do nosso tempo"; e era na casa do segundo que muitas vezes preferia hospedar-se quando, já diplomata, passava pelo Rio.

No início da década de 60, Merquior dava aulas de estética em seu apartamento de Santa Teresa a alunos atraídos por um anúncio de jornal que ele mandara publicar. E foi aí que, já casado com Hilda, sua companheira de colégio, recebeu para um jantar em torno do sociólogo americano Talcott Parsons, em julho de 1965. Mas não quis tornar-se professor universitário: preferiu fazer concurso para o Itamaraty, onde tirou o primeiro lugar. Em 1963, Manuel Bandeira o convidou para organizar com ele a antologia Poesia do Brasil. Colaborava então em revistas como Praxis, Senhor, Cadernos brasileiros e Arquitetura. Embora já tivesse publicado artigos no Jornal do Brasil em 1959, só no ano seguinte se vincula ao Suplemento Dominical, então dirigido por Reynaldo Jardim. Numa nota intitulada "Bilhete de editor", publicada no alto da página em 30 de abril de 1960, lê-se:

A primeira colaboração de JGM nos chegou como centenas de outras através de nossa seção Correspondência. Bastou ler o primeiro artigo para constatarmos que estávamos frente a um legítimo escritor amplamente capacitado a colaborar conosco. Publicamos o artigo e tempos depois chegou outro comprovando a categoria intelectual de seu autor. Mais um ou dois artigos de JGM vieram às nossas mãos sem que o conhecêssemos pessoalmente.

E finaliza o editorial:

Aqui estará ele, sem o compromisso do aparecimento semanal, mas mantendo um certo ritmo em sua colaboração que pretendemos venha contribuir para a melhoria do nível de produção poética em nosso meio.Neste Suplemento Dominical do JB Merquior assinou mais de 50 ensaios entre 1959 e 1962, alguns de página dupla. Os temas são estéticos, literários e filosóficos. "Neoolakoon ou da espacio-temporalidade" (17.10.59) não foi incluído em livro; "Galatéia ou a morte da pintura I e II" (26.11.60 e 07.01.61) também não. Há apreciações devastadoras sobre livros de poetas — O pão e o vinho, de Moacyr Félix, em 07.05.60; O dia da ira, de Antonio Olinto, em 20.08.60; Operário do canto, de Geir Campos, e Vento geral, de Thiago de Mello, em 12.06.60; Ode ao crepúsculo, de Lêdo Ivo, em 03.06.6l; Três pavanas, de Gerardo Mello Mourão, em 03.06.61. Mas há também elogiosas considerações sobre  Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Marly de Oliveira, e até para o hoje desconhecido Edmir Domingues, cujo Corcel de espuma comentou em 04.02.61.

No prefácio ao volume Crítica (1964-1989), de 1990, afirmava, rigoroso, sobre estes artigos:

Na época, os artigos nada indulgentes de minha coluna de crítica no SDJB, "Poesia para amanhã", incomodavam bastante vários versejadores. Hoje receio que eles incomodem principalmente o próprio autor, menos pela contundência que pela sua superficialidade.

Qualificado por Haroldo de Campos, em artigo no caderno Mais! da Folha de S. Paulo, de "crítico conservador" (19.04.92), já em outubro de 1960 Merquior percebia — e elogiava — a novidade do trabalho de tradução de Augusto, irmão dele, em E. E. Cummings. 10 poemas:

O livro — muito bem apresentado — traz inclusive uma objetiva introdução de A. C. à técnica de E. E. C. Quanto à versão para o português, é a melhor desejável. De uma maneira geral, A. C. manteve uma fidelidade digna de aplauso, e ainda por cima sem se restringir a um servilismo antipoesia. Nós sabemos quantas vezes o traddutore, por não querer ser traditore, acaba mais traidor do que nunca... Mas a lealdade de A. C. é muito mais ampla. Ela acompanhou a invenção de Cummings quando não é mais possível a simples tradução.

Basta examinar a relação desses artigos no JB, alguns incluídos em Razão do poema, para verificar o grau de maturidade intelectual alcançado precocemente por Merquior. Exigente consigo mesmo, resistiu a todos os apelos para reeditar seus livros iniciais. Desculpava-se dizendo que muito tinha a publicar antes de começar a reeditar. Na antologia de ensaios lançada um ano antes de sua morte referia-se aos artigos não incluídos no primeiro livro:

Excluí desta antologia todos os meus ensaios de estréia, todos os que publiquei desde 1959 no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, na revista Senhor e em outros lugares e não recolhi em minha primeira coletânea crítica, Razão do poema, de 1965. (...) Barrei sem remorso a minha juvenília. Como dizia meu saudoso amigo Murilo Mendes, precisamos ser contemporâneos, e não apenas sobreviventes, de nós mesmos.

Na conferência que fez no PEN Club, em junho de 1991, por sugestão afetuosa do cientista político Celso Lafer, que o trouxe ao Rio, Antonio Candido falou pela primeira vez, demoradamente, de Merquior. Em 18 de setembro de 1995, a meu pedido, o crítico enviou-me a versão escrita de trecho dessa fala, que reproduzi, em parte, na contra-capa da reedição de Razão do poema, pela Topbooks, em 1996. Transcrevo, por sua importância, a página integral, síntese perfeita da forma mentis de Merquior:

... foi sem dúvida um dos maiores críticos que o Brasil teve, e isto já se prenunciava nos primeiros escritos. Lembro como sinal precursor o ensaio que escreveu bem moço sobre A canção do exílio, de Gonçalves Dias, fazendo uma descoberta que dava a medida de sua imaginação crítica, — entendendo-se por imaginação crítica a capacidade pouco freqüente de elaborar conceitos que têm o teor das expressões metafóricas ou o vôo das criações ficcionais. Estou falando do seguinte: ao comentar a afirmação costumeira que o famoso poema é tão bem realizado porque não tem adjetivos, ele mostrou que a sua eficiência provém na verdade do fato de ser todo ele, virtualmente, uma espécie de grande expressão adjetiva, uma qualificação sem qualificativos, devido à tonalidade do discurso.
Num de seus ensaios mais recentes ele disse que a falta de informação filosófica prejudicava a maioria da crítica brasileira. Ora, deste mal ele estava galhardamente livre. A sua acentuada vocação especulativa e a vasta erudição que a nutria lhe permitiram fazer do trabalho crítico uma investigação que não se satisfazia em descrever e avaliar os textos, mas desejava descobrir o sentimento entesourado e em seguida ligá-lo a outros produtos da cultura. Daí um cruzamento fertilizador, característico do seu trabalho: o pensador José Guilherme Merquior era capaz de expor os seus pontos de vista com a expressividade de um escritor versado na melhor literatura, enquanto o crítico José Guilherme Merquior era capaz de interpretar os textos ou traçar a articulação dos movimentos com a capacidade dialética de discriminar e integrar, própria da mente filosófica. Por isso, poucos foram tão capazes de associar o impulso do pensador ao olhar do leitor penetrante. Nele, era notável a combinação de gosto fino, argúcia analítica, precisão da síntese e transfiguração reflexiva.
Não espanta que, sendo dotado de tais qualidades, Merquior tenha podido com igual maestria fazer análises finíssimas e construir visões integradoras. Ele sabia desmontar a fatura dos textos sem os reduzir à mecânica formalista e inscrever as obras na seqüência temporal sem deslizar para o esquema. Sobrevoando esses dons, a linguagem adequada, expressiva, cheia de flama, parecendo comunicar à página o ritmo trepidante que foi a sua vida de impetuosa dedicação às coisas mentais.

Em algumas passagens de seus livros Merquior esboça uma autobiografia intelectual, como, por exemplo, em A natureza do processo (1982), escrito em cinco semanas por provocação do editor Sérgio Lacerda:

...o autor não deixa de considerar este livro um reflexo de algumas das preocupações mais vivas de sua geração — uma geração condenada a aprender, na velhice do século, as lições que a história contemporânea já permite extrair da longa emulação de sistemas sociais no nosso tempo.

Ou nas páginas introdutórias de Crítica (1964-1989), que reviu no México, e lhe provocava recordações dos primeiros anos de atividade:

Meu trajeto ideológico foi passavelmente errático até desaguar, nos anos oitenta, na prosa quarentona de um liberal neo-iluminista. Se desde cedo mantive uma posição constante — a recusa dos métodos formalistas, então em pleno fastígio — por outro lado meu quadro de valores mudou muito, especialmente no que se refere à atitude frente às premissas estéticas e culturais do modernismo europeu, berço da doxa humanística de nosso tempo.

Antes, em abril de 1981, no discurso de agradecimento pelo prêmio de ensaio do PEN Club, que li em seu nome na cerimônia a que não pôde comparecer, declarou:

Ensaísta que procura não fugir às necessárias tomadas de posição, e insiste em exercer a escrita como discurso eminentemente crítico e autocrítico, não posso deixar de receber a distinção tão expressiva com o sentimento de que o combate por uma literatura menos formalista, mais racional e mais humana, não é uma luta vã — embora seja travada contra várias das mais poderosas mitologias da nossa época. A honra é grande, o estímulo ainda maior; meu agradecimento só pode tomar a forma de uma renovada fidelidade à defesa das letras contra toda superstição ideológica.

Em 1966 seguiu para Paris, seu primeiro posto internacional, como terceiro-secretário, levado por Bilac Pinto. Nessa época Merquior correu o risco de ser cassado: dera conferências no ISEB, participara da organização de um festival de cinema russo no MAM, e, em Brasília, ajudara a coordenar uma exposição de fotógrafos cubanos, pelo que teve de responder a inquérito. Depois trabalhou em Bonn, Londres, Montevidéu, novamente em Londres, uma rápida volta a Brasília, a seguir no México, e mais uma vez em Paris, onde estava como embaixador junto à Unesco quando foi surpreendido pela doença que o mataria, meses depois, nos Estados Unidos, em janeiro de 1991.

José Guilherme Merquior fez no Itamaraty uma carreira rápida e brilhante, o que não significa que tenha sido fácil. Algumas vezes o vi irritado com intrigas e perseguições veladas. Azeredo da Silveira, por exemplo, perseguiu-o o quanto pôde, por identificá-lo como funcionário e amigo de confiança de Roberto Campos. Depois que Merquior foi promovido, mandou-lhe um telegrama de cumprimentos. Recebeu imediatamente outro de Merquior, repudiando as felicitações. E um embaixador da família e do staff de Collor se opôs decisivamente à idéia de sua nomeação para o posto de chanceler.

Mas pertenciam também ao Itamaraty alguns dos amigos que mais estimava na vida: Paulo Renato Rocha Santos, a quem dedicou o ensaio sobre Gonçalves Dias; Jerônimo Moscardo de Souza, que chegou a morar em sua casa no período de preparação para o concurso do Itamaraty; Alberto da Costa e Silva, que o ajudou a se safar de problemas burocráticos, numa amizade ainda mais fortalecida pelo apreço que Merquior tinha pela obra poética de Da Costa e Silva, pai; Marcílio Marques Moreira, o interlocutor permanente e elo afetivo com San Tiago Dantas; Rubens Ricupero, cuja clareza mental e conhecimentos de política externa e economia eram para ele fonte de permanente consulta; e Roberto Campos, que sempre procurou ajudá-lo na carreira, como provam algumas cartas do arquivo pessoal de Merquior. Fascinado por sua inteligência, Campos costumava enviar textos de sua autoria para que ele comentasse. Foi ainda na casa de Merquior em Brasília, na noite do dia em que Henry Kissinger fez conferência na UnB interrompida pelos estudantes, que Campos acertou os últimos detalhes de sua candidatura ao Senado por Mato Grosso.

No começo da carreira conheceu San Tiago Dantas, que se tornou seu amigo. Por especial empenho de Merquior, San Tiago foi o paraninfo da turma de 1963 do Instituto Rio Branco, que escolheu o jovem crítico para orador. O convívio deles foi curto, mas afetuoso. Sempre que se referia ao autor de Dom Quixote — um apólogo da alma ocidental, fazia-o com admiração, e gostava de recordar suas idas à casa dele na rua D. Mariana, em Botafogo, onde a filosofia alemã e a literatura francesa — notadamente Proust, uma das paixões literárias do anfitrião — eram o tema dominante. Relembrava também, com especial emoção, uma visita à casa de San Tiago em Petrópolis na companhia de Hilda, Marcílio Marques Moreira e Jerônimo Moscardo de Souza, ocasião em que o político serviu canjica com coco, sobremesa muito apreciada por Merquior.

Em sua biblioteca, hoje no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, há alguns livros de San Tiago, entre eles um exemplar de Figuras do Direito (ed. José Olympio, 1962) dedicado: "A J. Guilherme Merquior, com a estima e admiração de San Tiago Dantas". A data é 24 de julho de 1964, menos de dois meses antes da morte do ex-chanceler, às 6 da manhã do dia 6 de setembro. Sob o impacto dessa morte, Merquior escreveu um artigo e, como de praxe, consultou o Itamaraty antes de divulgá-lo. Era seu desejo publicar no Jornal do Brasil, conforme se lê no pedido que o então terceiro-secretário enviou, no dia 16 de setembro de 1964, ao chefe do Departamento Consular e de Imigração do Itamaraty, solicitando "juízo favorável à publicação do referido texto". No protocolo, há quatro rubricas e apenas uma assinatura legível — a do secretário-geral A. B. L. Castelo Branco. No parecer final, lê-se: "Só poderá ser autorizada a publicação se o funcionário escoimar do artigo toda opinião política, na forma dos regulamentos em vigor. Nada há a opor aos merecidos elogios pessoais". Como o artigo nunca apareceu nas páginas do JB, é de se supor que Merquior, a ter que suprimir passagens do texto, preferiu não publicá-lo. Contratempos à parte, ele não deixava de reconhecer que devia ao Itamaraty o fato de ter realizado a trajetória intelectual que conhecemos.

O emocionado artigo de Merquior começa assim:

Junto ao túmulo de San Tiago Dantas, Afonso Arinos e Roberto Campos falaram dele como do mais dotado representante de sua geração; disseram da invencível tristeza de ver desaparecer, colhido aos cinqüenta e poucos anos, aquele exemplo superior de uma geração que, tendo chegado tarde ao poder, parece destinada a sofrer a sua fugacidade até mesmo na perda prematura de alguns de seus melhores membros.

Inédito até a morte de Merquior, este texto destaca o sentido pedagógico da atuação pública de San Tiago para as novas gerações e reconhece a originalidade de sua visão da sociedade brasileira e das relações internacionais, ressaltando que sempre sobrepôs ao tosco moralismo — tendo na época na UDN a mais alta representação — uma visão larga dos problemas, amparada permanentemente numa ética e num entendimento íntimo da "razão histórica". Em 1969, Merquior dedicou à memória de San Tiago Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, primeiro tratamento sistemático, entre nós, sobre a Escola de Frankfurt.

Em todos os postos onde esteve procurou difundir a cultura brasileira. Embaixador no México, criou a cátedra Guimarães Rosa, além de ter realizado a compra da atual sede da embaixada por empenho pessoal junto ao presidente José Sarney. Ali se tornou íntimo do poeta e ensaísta Octavio Paz, que viria a saudá-lo na sua despedida, em nome dos mexicanos, numa simpática festa organizada por Hilda nos jardins da embaixada. A convite de Paz, voltaria ao México, já doente, para o seminário "El siglo XX: La experiencia de la liberdad", organizado pela revista Vuelta e a Televisa, participando do debate sobre "La nueva Europa, Estados Unidos y America Latina", ao lado de Daniel Bell, Hugh Thomas, Mario Vargas Llosa, Jean François Revel. Teve alguns livros editados pelo Fondo de Cultura Económica, a mais prestigiosa editora mexicana, e colaborou em revistas como Vuelta, de Octavio Paz e Enrique Krause; Cuadernos y Libros Americanos, de Leopoldo Zea, e Nexos, de Hector Aguilar Camín. Foi Krause, historiador que estimava por sua corajosa revisão da história mexicana, quem melhor escreveu sobre Merquior depois de sua morte, no artigo "O esgrimista liberal" (Vuelta, janeiro de 1992).

(...) Sua maior contribuição à diplomacia brasileira no México não ocorreu nos corredores das chancelarias ou através de relatórios e telex, mas na tertúlia de sua casa, com gente de cultura deste país. (...) A Embaixada do Brasil se converteu em lugar de reunião para grupos diferentes e até opostos de nossa vida literária. Lá se esqueciam por momentos as pequenas e grandes mesquinhezas e se falava de livros e idéias e de livros de idéias. Merquior convidava a gregos e troianos, escrevia em nossas revistas e procurava ligar-nos com publicações homólogas em seu Brasil. (...) Merquior cumpriu um papel relevante: foi uma instância de clareza, serenidade e amplitude de alternativas no diálogo de ambos os governos.

Professor no King's College, em Londres, doutorou-se em letras pela Sorbonne, orientando de Raymond Cantel, com tese sobre Carlos Drummond de Andrade aprovada com louvor em junho de 1972. Depois de levar meses para acusar a remessa dos capítulos que Merquior lhe enviava, Drummond respondeu:

Eu poderia tentar justificar-me alegando que esperava o recebimento do texto completo para lhe escrever. Mas a verdade verdadeira é que, desde a leitura das primeiras páginas, me bateu uma espécie de inibição que conheço bem, por ser velha companheira de minhas emoções mais puras. Se você estivesse ao meu lado nos momentos de leitura, decerto acharia graça na dificuldade e confusão das palavras que eu lhe dissesse. Talvez até  nem dissesse nenhuma. E na minha cara a encabulação visível diria tudo... ou antes, não diria nada, pois o melhor da sensação escapa a esse código fisionômico. Senti-me confortado, vitalizado, vivo. Meus versos saem sempre de mim como enormes pontos de interrogação, e constituem mais uma procura do que um resultado. Sei muito pouco de mim e duvido muito — você vai achar graça outra vez — de minha existência. Uma palavra que venha de fora pode trazer-me uma certeza positiva ou negativa. A sua veio com uma afirmação, uma força de convicção que me iluminou por dentro. E também com uma sutileza de percepção e valorização crítica diante da qual me vejo orgulhoso de nobre orgulho e... esmagado. Eis aí, meu caro Merquior. Estou feliz, por obra e graça de você, e ao mesmo tempo estou bloqueado na expressão dessa felicidade.

Também se doutorou na London School of Economics, sob a batuta de Ernst Gellner — de quem viria a se tornar amigo e introdutor da obra entre nós — com tese sobre a teoria da legitimidade em Rousseau e Weber, publicada depois pela Routledge & Kegan Paul, e que, no posfácio, em 1990, à edição brasileira finamente traduzida por Margarida Salomão, qualificou de "meu livro mais elaborado". Este passou quase despercebido no Brasil, embora tenha provocado na Inglaterra o mais vivo interesse acadêmico, ganhando elogios de Peter Gay, John Hall e Wolfgang Mommsen, o grande especialista em Weber.

Ele poderia ter sido igualmente um crítico imbatível de artes plásticas, porque acompanhava tudo a respeito, mantendo-se atualizado sobre as novidades teóricas no setor. Adorava Poussin, Tiepolo, mas também escreveu sobre Degas, Hodler, Lygia Clark, Lygia Pape, e outros. Vejam-se os eruditos ensaios que dedica ao tema em Formalismo e tradição moderna. Em viagem a Florença, já doente, fez questão de rever a capela Brancacci, onde se encontram os afrescos de Masaccio, pintor que tanto estimava. Pode-se mesmo dizer que a Itália foi a sua pátria artística, e não escondia o desejo de, um dia, ser nomeado embaixador neste país.

Quando decidiu candidatar-se à Academia Brasileira de Letras não imaginava que a disputa com Arnaldo Niskier iria se prolongar por mais de um ano. Examinou as possibilidades. Escreveu à mão uma tabela com os nomes dos acadêmicos por estado: na Bahia, onde supunha ter mais votos, os de Luiz Viana Filho, Jorge Amado, Herberto Sales e Eduardo Portella. Ao lado do último nome desenhou um envelope, ou seja, Portella votaria por carta. O mesmo desenho aparece ao lado do nome de João Cabral. Na horizontal lia-se a lista por estados; na vertical os nomes dos membros da ABL agrupados segundo as expectativas de voto: "certos, prometidos, prováveis, possíveis, certos para Niskier". Na primeira votação ninguém conseguiu quorum. Niskier tinha em Austregésilo de Athayde, presidente da casa, seu mais poderoso aliado.

Marcou-se nova eleição para meses depois. O poder de que diziam estar Merquior aureolado não contou. Não houve ministro nem presidente Figueiredo fazendo pedidos constrangedores aos votantes. Merquior teve de acompanhar sozinho o desenrolar da campanha. O empresário José Carlos Nogueira Diniz, amigo e compadre, pôs à sua disposição um pequeno apartamento na Sá Ferreira — rua onde morava sua mãe, Dona Belinha — e ele vinha para o Rio nos fins-de-semana encontrar-se com eleitores e amigos. Em novembro de 1982, elegeu-se, depois de longa disputa, à vaga de Paulo Carneiro na ABL, vencendo por 22 votos contra 15 dados a Niskier e um a Geir Campos. A recepção, na vitória, foi patrocinada pelo mesmo Nogueira Diniz, que recebeu, em seu apartamento na Barra da Tijuca, convidados em grande maioria da república das letras. O discurso de posse, que muitos levam meses a escrever, Merquior fez num fim de semana, e no dia da cerimônia, 11 de março de 1983, chegou à Academia de táxi. Nada que sugerisse o poder que lhe era atribuído.

Nesta ocasião entrevistei-o para a Última hora (13.11.1982) e, entre outros assuntos, perguntei-lhe sobre o liberalismo. Sua resposta:

O liberalismo moderno é um social-liberalismo, é um liberalismo que não tem mais aquela ingenuidade, aquela inocência diante da complexidade do fenômeno social, e em particular do chamado problema social, que o liberalismo clássico tinha. O liberalismo moderno não possui complexos frente à questão social, que ele assume. É a essa visão do liberalismo que eu me filio.

Sobre a validade dos conceitos de direita e esquerda afirmou:

Eu acho que esse tipo de conceituação está em grande parte esvaziado pelo uso demasiado sloganesco que dele tem sido feito. O problema da direita versus esquerda, usado na base do clichê, tem levado realmente a muito pouca análise. É o caso típico em que a discussão produz mais calor do que luz. Trata-se de palavras dotadas de uma grande carga emocional e que são usadas para fins puramente polêmicos na vida política e no combate ideológico. Eu hoje sou um cético em relação ao uso dessas categorias.

O último ensaio de Merquior chamou-se "Situação de Miguel Reale", para o volume Direito Política Filosofia Poesia, coordenado por Celso Lafer e Tércio Sampaio Ferraz Jr. para a editora Saraiva, comemorativo do octogésimo aniversário de Reale. Embora escrito em meio a exames médicos, pois a doença estava avançada, provocou o entusiasmo de Reale, que em carta de 7 de dezembro de 1990 assim o expressou:

É uma análise abrangente e profunda, ponto de partida essencial a qualquer nova indagação, a começar pelas observações sobre o culturalismo. Você viu bem a correlação de meu pensamento com o de Croce, pois bem cedo fui um leitor entusiasta de sua revista, Critica, que renovou o pensamento italiano. (...) A influência de Hegel e Marx em minha formação foi atenuada pela filtragem croceana, revelando-se logo minha oposição a Gentile e seu idealismo "attualista". (...) Outro ponto que me impressionou foi o seu paralelo com Raymond Aron, a quem me aproximo pela constante vivência da problemática filosófica em sintonia com a política.

Trabalhador intelectual incansável e extremamente organizado, Merquior escrevia com rapidez, praticamente sem corrigir. Uma vez, já no aeroporto, de volta para Londres, se deu conta de que não preparara seu artigo semanal para o JB. Pediu-me que conseguisse umas folhas de papel e voltasse em meia hora. Fui passear pelo aeroporto e, quando retornei, recebi o manuscrito e um novo pedido: que fizesse a gentileza de mandar datilografar e enviar, no dia seguinte, ao Mario Pontes, do JB. Escrevendo de Londres, em 16 de outubro de 1984, ao mesmo Miguel Reale, que lhe estranhara o silêncio dos últimos meses, conta:

A razão do meu silêncio é a infindável labuta de minha pena este ano, ora em pleno terceiro livro. No primeiro semestre, redigi um estudo sobre Foucault, a sair aqui dentro de um ano, e um exame crítico algo alentado do estruturalismo e sua seqüela: From Saussure to Derrida (350 pgs.). Agora me encontro todo entregue a um volume, mais conciso, sobre o marxismo ocidental. Todos encomendas locais. Mas deram e dão trabalho: releituras, novas leituras, reapreciações...

Um artigo fundamental para a compreensão do modo como Merquior pensava o Brasil publicou-se na Folha de S. Paulo em 10.03.1985. "Nova República: o horizonte social-liberal" começava dizendo:

Como imaginar o Brasil da Nova República? Talvez não seja mau começar por uma constatação: a de quanto o nosso país, até aqui, já conseguiu desmentir os estereótipos mais renitentes sobre a América Latina em seu conjunto.

E finalizava com um agudo perfil de Tancredo Neves:

Graças a seu senso histórico-filosófico do papel do Estado, Tancredo regenera a noção da autoridade legítima entre nós. Daí a tranqüila, suave impressão que cerca, nesse homem proverbialmente afável, o sentido no entanto vivíssimo da autoridade. Reparem nas montanhas de Minas: delas emana uma majestade amena, muito diversa da monumentalidade abrupta de outros relevos. Algo semelhante deflui da imago potestatis de Tancredo. Essa majestas sem pompa, mas sempre cônscia da própria dignidade, é a que melhor consulta os requisitos do poder em reconstrução na transição democratizante. (...) No discurso de Vitória, Tancredo preconizou o reforço da democracia e a reanimação do princípio federal. O poder, na Nova República, admite, deseja desconcentrar-se. E pode fazê-lo, porque o que perder em concentração será ganho em autoridade. No ciclo atribulado da nossa Quarta República, Juscelino nos ensinou o convívio com o desenvolvimento. A grande, sóbria esperança da Nova República é que com Tancredo, nosso príncipe civil, a nação interiorize de vez a vivência da democracia. Qualquer coisa aquém disso seria indigna do Brasil moderno.

O desejo de interferir no debate social brasileiro levou Merquior a escrever, em diversas ocasiões, a políticos com quem tinha relações de amizade. A José Sarney, então presidente, endereçou cartas hoje preciosas para a análise do seu pensamento político, como é exemplo a que mandou de Londres, em 15 de abril de 1985.

(...) A meu ver, seu governo será um bombom: o recheio é castelista (Sarney, Leônidas), mas o envelope de chocolate será a Aliança Democrática, com dominante PMDB.
A alternativa: governar também com o PDS, me parece ir, se a dose for muito alta, contra a aspiração de mudança que anima o país, e portanto poderia impopularizar. O que, evidentemente, não proíbe o aproveitamento de um que outro nome nacional do PDS.
A permanência do Presidente no PMDB torna-se, por essa lógica, a essa altura, imprescindível. Se V. lá está, para que sairia? O único resultado prático de uma eventual preferência pelo PFL seria entregar o maior partido ao herói de Homero.
Quando o que seria conveniente contê-lo, em sua condição de alternativa latente para seu poder presidencial, aliciando para tanto boa parte do PMDB. Como? Reforçando a ligação Sarney-Lyra. Fazendo talvez Fernando Henrique ministro (do exterior? da própria Casa Civil?). E sobretudo fazendo desde já certos gestos simpáticos à esquerda, embora — ça va sans dire — sem comprometer a linha moderada, social-liberal, que presidiu o nascimento da nova república. Uma 'apertura a sinistra', sem exagero.
Que gestos poderiam ser esses? De imediato, vejo dois. Um, o seu programa de emergência, desde que assegurada a sua compatibilidade com o reforço efetivo do combate à inflação.
Este ponto, meu caro Sarney, é absolutamente vital. V. está sendo — injustamente — acusado de não ligar para a severidade indispensável da nossa postura econômico-financeira. Nós, os literatos, seremos sempre acusados de moleza nesse capítulo. O jeito é impedir a todo custo que essa imagem falaciosa ganhe terreno. A inflação é de fato o mais cruel dos impostos: sempre atinge principalmente a pequena classe média e as camadas populares, e a preocupação de dominá-la não é nenhum preconceito direitista ou conservador.

Na mesma carta advoga o reatamento das relações com Cuba, colocando-se à disposição para trabalhar discretamente nesse processo:

Outro gesto de grande charme para a esquerda: reatar relações com Cuba. 'Eles ficariam meio ano digerindo este pitéu, obrigados a achar que 'pô, esse Sarney até que não é assim tão reaça...'
Cuba hoje não oferece maiores perigos na América do Sul. O guevarismo já era. E o reatamento tem pelo menos três vantagens para nós:

a) abriria um significativo potencial de exportações brasileiras;
b) permitiria ao Brasil influir, em boa medida, na conduta internacional de Havana, como faz o México, em sentido moderador e realista;
c) evitaria que, no futuro, nosso reatamento se desse a reboque de uma reconciliação diplomática Cuba/USA, reconciliação essa, em médio prazo, tão certa quanto o foi o reconhecimento de Pequim por Washington, na década passada.

Em 1º de outubro de 1990, Merquior teve um encontro com o presidente Fernando Collor de Mello na passagem deste por Paris, a caminho de Praga. Voltariam a se encontrar na residência parisiense de Baby Monteiro de Carvalho, quando conversaram a sós por quase uma hora. Nesta noite, Collor expôs suas idéias sobre um partido social-liberal e pediu a Merquior para desenvolver o tema. O paper que produziu, só conhecido por uns poucos com os quais discutia enquanto o elaborava, são, no original, 33 páginas datilografadas, nas quais estrutura uma "agenda social-liberal para o Brasil", abrangendo sete temas: a) o papel do Estado; b) democracia e direitos humanos; c) o modelo econômico; d) capacitação tecnológica; e) ecologia; f) a revolução educacional; e g) desarmamento e posição internacional do Brasil. Só não desenvolveu os itens d e e, sugerindo, já doente, que pedissem a Roberto Campos para fazê-lo.

Esses textos, pensados como programa de partido, escritos e ampliados a partir das intuições e indicações de Collor, foram depois publicados por este, provocando uma grande confusão nos jornais, que o acusavam de plagiar Merquior. Em O Globo de 10 de janeiro de 1992, Roberto Campos, com sua natural lucidez, resumiu a questão: "Vejo na atitude de Collor um procedimento normal a qualquer presidente, que raramente escreve seus artigos e discursos. A figura do ghost-writer é uma instituição mundial".

Nos últimos anos, sempre que Merquior vinha ao Brasil marcávamos visita ao escritório do advogado Jorge Serpa, para uma "auscultação" da situação política e econômica do país. Merquior gostava das análises de conjuntura que Serpa sabia fazer, da maneira como via o Brasil em consonância com o mundo lá fora. A conversa também passava por temas filosóficos, pois Serpa é um orteguiano de carteirinha, além de conhecedor de filosofia antiga, em especial o Platão do Sofista. Curiosamente, sempre que saíamos do escritório do advogado, então na Praça Pio X, Merquior pedia para irmos até a igreja da Candelária. Postava-se a admirar o interior, fazendo comentários estéticos, e nunca falava em religião ou fé. Mas penso que, no íntimo, esses assuntos o acicatavam.

Foi também Jorge Serpa quem pavimentou o caminho de José Guilherme Merquior até às páginas de O Globo. Certo dia, depois de almoçarmos na TV Globo, na hora da despedida, Roberto Marinho chamou Merquior a um canto da sala. Vi que ele balançava a cabeça negativamente, naquele jeito que só quem o conheceu poderia entender. E ria. Depois, no carro, contou-nos o diálogo. ---"Merquior, você tem alguma coisa contra O Globo?" — "Não, Dr. Roberto, nada. Por quê?" — "Porque nunca o vi escrevendo no Globo". Começava ali, naquela tarde, a coluna A vida das idéias, que estreou a 6 de dezembro de 1987 e só terminou pouco antes de sua morte, com um artigo intitulado "O sentido de 1990".

A convite de Collor, Merquior estava em Brasília, a 20 de fevereiro de 1990, para o almoço em torno do escritor peruano Mario Vargas Llosa, então candidato à presidência do Peru, mas tendo ainda que enfrentar o segundo turno das eleições. O almoço, na casa do médico Eduardo Cardoso, teve também a presença do empresário Roberto Marinho. Dois dias antes Merquior me ligara de Londres, contando que estava fazendo as malas porque tinha recebido um telefonema de Marcos Coimbra informando que Collor o convocava a participar desse encontro. Os jornais logo começaram a especular sobre suas possibilidades ministeriais.

Viajei para Brasília no dia seguinte com Dr. Roberto e seu amigo Álvaro Dias de Toledo. No hangar, nos esperavam Merquior e Toninho Drummond, diretor da TV Globo na capital. Sugeri a Merquior que desse ao Dr. Roberto um quadro da situação, e deixamos os dois conversando por uns 20 minutos. Depois Toninho entrou num carro com Dr. Roberto e Álvaro, eu em outro, com Merquior, e rumamos para a Q.I. 15 do Lago Sul, endereço da bela mansão do amigo de Collor. Despedi-me de Merquior e fui, com Toninho e Álvaro, almoçar na TV Globo.

Por volta das 15h30, Roberto Marinho chegou do almoço. Descansou  meia hora no sofá da sala de Toninho, e logo após seguimos para o aeroporto. No avião, perguntei: "O que o senhor achou do almoço? Viu chances em relação à nomeação de Merquior para o Ministério das Relações Exteriores?" E o Dr. Roberto: "Não tive oportunidade de conversar sozinho com o Collor. Aliás, tenho pouca intimidade com ele, apesar de conhecê-lo desde pequeno. Mas o Merquior foi prestigiadíssimo no almoço. A toda hora o presidente reportava-se a ele. Pediu-lhe, inclusive, que fizesse o discurso de saudação a Vargas Llosa".

À noite Merquior ligou para comentar os fatos do dia. Disse-me que o presidente dera a ele uma sala no Palácio para que trabalhasse no discurso de posse (depois modificado na segunda parte por Gelson Fonseca). Merquior ficou em Brasília até a quinta-feira, e esteve no Senado, onde seu encontro com Fernando Henrique Cardoso causou frisson entre repórteres e fotógrafos. Contou-me depois, de Paris, que Collor o havia sondado para o Ministério da Cultura, mas, diplomaticamente, fizera ver ao presidente que a nomeação lhe traria uma redução salarial drástica num momento em que os filhos Júlia e Pedro ainda se encontravam em idade escolar. Naturalmente teria aceitado o Ministério das Relações Exteriores, o coroamento da carreira no Itamaraty, mas nunca lamentou, nem demonstrou rancores de qualquer ordem: não era do seu feitio. Retomou os compromissos profissionais em Paris; para Collor escreveu ainda um discurso, lido na República Tcheca como saudação a Vaclav Havel, e outro para ser dito em Portugal.

Merquior era um contendor verbal rápido e certeiro, mas querer reduzi-lo apenas a polemista é um erro. A propensão ao debate de idéias, que muitas vezes levou-o a rebater com dureza os adversários, foi usada pela mídia com fins facilitários. Poucas vezes se procurou promover seriamente uma discussão profunda. Os adversários usaram sua veia polêmica para desqualificá-lo como figura exponencial da direita: se o argumento de Merquior era forte — e não havia dúvidas de que era um erudito imbatível — então a saída era atacá-lo noutro flanco.

Um caso sintomático ocorreu quando chamou a atenção para a presença de vários parágrafos de Claude Lefort em livro de Marilena Chauí, sem as devidas aspas. Em vez de desculpar-se — afinal, Merquior nunca falara em plágio, e sim em "desatenção", como disse, em julho de 1989, na Folha de S. Paulo: "Repito pela enésima vez que ao detectar a presença de frases de Lefort no texto de Marilena jamais me passou pela cabeça achar que ela o fazia com a intenção de esconder o leite" — a filósofa paulista revidou batendo na velha tecla de direita versus esquerda. O fato é que se armou uma tempestade em São Paulo, com direito até a abaixo-assinado e outras reações azedas contra ele.

Todos os que não conseguiam enfrentá-lo de forma minimamente razoável partiam para o agravo. Eduardo Mascarenhas, por exemplo, declarou que Merquior praticava "terrorismo bibliográfico", isso porque seus livros tinham muitas citações. Em nenhum fórum intelectual sério este tipo de argumento funcionaria. Então no auge da fama — por ter declarado que "jamais brochara" — Mascarenhas revelou, num programa de televisão em que Merquior era o entrevistado, que se dera ao trabalho de contar quantos nomes havia no índice onomástico de As idéias e as formas. Logo depois começaram os debates entre os dois no Jornal do Brasil sobre a validade científica e epistemológica da psicanálise. O jornal não economizou espaço. Merquior declarara, no Canal Livre, que "a psicanálise era uma doença do intelecto", e em "O avestruz terapêutico", artigo publicado no JB, em 31 de janeiro de 1982, completava:

Desconfio que a próxima edição do perspicaz Tratado geral dos chatos, de Guilherme Figueiredo, trará um capítulo especialmente consagrado ao chato analisando, que, decretando 'todo mundo neurótico', não descansa enquanto não vence a 'resistência' (ou torra os países baixos) dos amigos e até conhecidos, no ignóbil afã de prostrá-los no divã.

No início dos 80, o debate com os psicanalistas mobilizou a imprensa. Os artigos de Merquior no JB, onde colaborava, dividiram a opinião dos intelectuais especialistas na matéria. O psicanalista Mascarenhas respondia pela categoria. Na época, dizia-se que seus textos, antes de publicados, eram lidos por colegas teoricamente mais preparados. Coincidência ou não, o fato é que lançou depois vários livros e jamais recolheu, em nenhum deles, o material que assinou durante a polêmica. Ele encarnava a classe ferida, da qual um dos gurus era Hélio Pellegrino. Este veio a publicar um artigo na Folha de S. Paulo (13.02.82) sob o título: "Comigo não, violão!", onde procurava desacreditar Merquior enfatizando tratar-se de "funcionário de governo antidemocrático". Como não apresentou nenhuma refutação teórica relevante, levou Merquior a dizer: "Trata-se de um pensador sem idéias e um autor sem livros". No artigo-resposta, publicado no mesmo jornal no dia 17 e intitulado "Escapismo e agressão", Merquior contra-atacava:

As críticas que venho dirigindo à psicanálise certamente possuem uma quota de sátira, irresistivelmente provocada pela própria beatice que costumam exibir os círculos devotos de Freud. No entanto, desde o início, isto é, desde junho de 1980, quando foi lançado o livro O fantasma romântico, todos os textos em que procurei questionar a validez científica, terapêutica e cultural da psicanálise expõem vários argumentos e várias referências a pesquisas empíricas, uns e outras inteiramente independentes, em si mesmos, do tom de sátira ou ironia presente nesses escritos.

Merquior não conhecia Hélio pessoalmente. Nessa mesma época, fomos a uma galeria de arte em Ipanema, e, mal chegamos, noto pelo vidro o Hélio Pellegrino. Nisso, alguém vem falar comigo, e Merquior entra antes que pudesse preveni-lo de que Hélio estava lá. Fico acompanhando de fora o que se passa no interior, e daí a pouco o vejo em meio a um grupo onde se encontrava o psicanalista. Conversa longa, cheia de risos. Em seguida ele vai para outra roda. Quando consigo me deslindar, parto a seu encontro, e me pergunta: "Quem é aquele camarada simpático?" Era Hélio Pellegrino. Merquior riu muito ao saber.

Uma de suas maiores qualidades residia em saber apreciar o contendor inteligente. As discussões com Leandro Konder — de quem se tornara amigo antes dos 20 anos, quando se conheceram nas sessões de cinema do MAM e logo passaram a trocar idéias em torno da obra do marxista húngaro Georg Lukács — e com Carlos Nelson Coutinho, outro companheiro pelo qual tinha enorme afeição, contabilizava-as entre seus prazeres intelectuais. Respeitava críticas agudas, como a de Rubem Barbosa Filho a O marxismo ocidental, em julho de 1987, na revista Presença. E seu primeiro livro, Razão do poema, ainda hoje considerado um feito por tê-lo publicado aos 25 anos, teve apresentação de Leandro Konder. Mas, ao contrário de Leandro e Carlos Nelson, houve também os que preferiram, para desviar a atenção, tachá-lo, simplesmente, de reacionário e intelectual orgânico da ditadura.

Entre os muitos com quem polemizou estava o sociólogo Francisco de Oliveira, que Merquior considerava 'filosoficamente incompetente',  desafiando-o para um debate público. O sociólogo recusou, mas se comprometeu a publicar qualquer ensaio que o desafiante enviasse aos Cadernos Cebrap, de que era diretor. Antes havia dito que só lera um livro do seu adversário. Em declaração à Folha de S. Paulo Merquior atacava: "Enquanto não acontece o debate eu tenho duas tarefas para ele — ler alguns dos meus livros e realizar com categorias marxistas uma análise das reformas econômicas gorbatchovianas". Para Oliveira, o marxismo estava em plena vitalidade, enquanto para Merquior eram visíveis os sintomas de exaustão.

Polemizou também com Mário Vieira de Mello, nos Cadernos RioArte, sobre temas gregos; com Carlos Nelson Coutinho sobre a democracia no interior do marxismo; com José Artur Gianotti; com o embaixador Meira Pena sobre o pensamento de Jung, e com muitos outros. Acusado por figuras como Carlos Henrique Escobar de "empregadinho da ditadura militar, servil servidor de um providencial cabide de empregos para intelectuais orgânicos", reagiu qualificando o adversário de "intelectual pigmeu e leviano".

Respondendo ao crítico literário Wilson Martins, que comentara em dois artigos, publicados em junho de 1984 no JB, o livro O elixir do apocalipse (1983), num texto a que chamou "O martinete", ironizou:

Minha famigerada erudição, já cansei de insinuar, mal passa de uma ilusão de ótica. Na maioria das vezes em que é indigitada, ela parece refletir apenas a ignorância dos que a acusam. Será minha culpa se, em nosso meio intelectual, volta e meia ainda se valoriza mais a sacação do que a fundamentação, o palpite do que o argumento, a alegre usurpação de idéias alheias do que o cuidado em identificar tradições de pesquisa e linhagens de pensamento?

Todas essas tomadas de posição eram atitudes críticas, não pessoais. Fez questão de convidar Marilena Chauí a dar conferência no México — e ela não aceitou. Certa vez referiu-se a Caetano Veloso como "um pseudo-intelectual de miolo mole". E fundamentava a opinião: "...não compartilho dessa visão pateta do Brasil de que os grandes astros da música popular são intelectuais". Conversando com Caetano, há tempos, dele ouvi que, depois desse episódio, certa noite em São Paulo pediu a seu assistente para limitar a afluência ao camarim após o show, porque um compromisso o obrigava a sair tão logo finalizasse a apresentação. Soube depois que Merquior lá estivera, mas fora barrado pelo assessor, que não fazia a menor idéia de quem ele era. Caetano achou graça da desinformação de seu empregado, confessou que gostaria de ter recebido o ensaísta, e repetiu, divertido, a expressão "miolo mole", afirmando que Merquior estava certo. Creio que a conversa entre os dois teria sido cordialíssima.

Testemunhei inúmeras reações hostis a Merquior, em geral de pessoas que não o conheciam pessoalmente. Darcy Ribeiro, por exemplo, durante muito tempo só se referia a ele com ironias. "E o seu amigo de direita?", me perguntava. Ou ainda: "Como vai o protegido de Roberto Campos?" Nos seus cacoetes de homem de esquerda, costumava falar de supostas comissões recebidas pelo economista e diplomata e depositadas em nome de pessoas íntimas dele, como Merquior. Nas reuniões das manhãs de quinta-feira em seu gabinete, chamadas de "Culturinha'' — quando acumulava os cargos de vice-governador e secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, no governo Brizola — vez por outra fazia comentários maledicentes sobre Merquior e sua obra — que intuía mas não tinha lido. Surpreendi-me quando, um dia, Darcy me chamou com ar aliciante, dizendo: "Zé Mario, você tem falado com seu amigo reacionário?" Sabendo a quem se referia, respondi: "Falo sempre". E ele: "Preciso de uma ajuda. É o seguinte: o Brizola quer erigir um monumento a Zumbi dos Palmares. Vamos ter que abrir concurso, o que é um desastre, porque pela lei somos obrigados a aceitar a escultura ganhadora, e acho a escultura que se faz hoje no Brasil uma merda. A mais bela estatuária negra que já vi está no Museu Britânico, que possui uma magnífica coleção de estátuas do Benim, na Nigéria. Como ninguém sabe a cara que tinha Zumbi, minha idéia é pôr no monumento desenhado pelo Oscar (Niemeyer) a cópia de uma dessas estátuas, mas para isso preciso de uma reprodução em gesso de uma delas. Fale, por favor, com seu amigo em meu nome, e diga que estou pedindo a ajuda dele".

Telefonei imediatamente para Merquior, que se prontificou a colaborar. Nem imaginava a confusão burocrática em que se metera. No Museu, ao explicar o que desejava, lhe informaram que se tratava de patrimônio nacional da Nigéria, e era necessário pedir autorização. Ansioso, a toda hora Darcy perguntava pelo assunto. Até que Merquior desembarca no Brasil trazendo a desejada cópia, e me procura na vice-governadoria — exatamente numa quinta-feira, dia em que o staff cultural de Darcy se reunia numa sala ao lado do seu gabinete. E chega quando os membros desse conselho começam a sair e se deparam com ele no corredor trazendo uma caixa debaixo do braço. Muitos ficam surpresos ao vê-lo, mas logo Darcy aparece e grita: "Merquior, que prazer vê-lo!" E dirigindo-se aos outros: "Bem, pessoal, me despeço de vocês, porque tenho muito que conversar com o Merquior e o Zé Mario". Em seguida nos arrasta para seu gabinete, e o final da história está na Avenida Presidente Vargas, no monumento a Zumbi dos Palmares: aquela cabeça é a cópia tão desejada por Darcy e conseguida por Merquior...

Depois disso, sempre que ele vinha ao Brasil almoçávamos com Darcy, muitas vezes em seu apartamento, na esquina de Bolívar com Avenida Atlântica. E mudou a maneira do antropólogo se referir a Merquior. Darcy passou a dizer: "Esse camarada é realmente muito inteligente". E conversavam, conversavam muito. Quando da inauguração do Memorial da América Latina, em março de 1989, Merquior o ajudou nos contatos com os convidados mexicanos. E veio a São Paulo a convite de Darcy, o comandante do evento, que hospedou os convidados — dele e do governo de São Paulo — no Macksoud Plaza. Darcy também convidou Merquior a escrever na Revista do Brasil, então sob sua tutela. A camaradagem adensou-se ainda mais quando descobriu que Merquior escrevera sobre Rondon. Fez questão de incluir o artigo no número 1 da revista Carta, que editava no Senado, e redigiu a nota: "Veja aqui o Merquior, jovem filósofo, avaliando Rondon, o maior dos humanistas brasileiros".

Ainda em março de 89 acompanhei Merquior numa visita a Antonio Carlos Magalhães, internado no Incor, que nos recebeu de pijama curto, sereno, às vésperas de submeter-se a delicada cirurgia no coração. À noite fomos jantar com Celso Lafer e sua mulher Mary, e o encontro no Fasano revelou-se uma delícia, nem tanto pela comida mas pelas saborosas histórias que ouvi de ambas as partes.

A biblioteca de Merquior construiu-se em função de suas urgências intelectuais. Nos primeiros anos predominou o interesse por temas literários. Quando se mudou para Paris, doou à UnB cerca de mil livros, afora os que deixou no Rio, na casa de sua mãe, na rua Sá Ferreira, e no escritório do pai. Numa passagem pelo Rio, abriu várias caixas de livros: separou alguns, me deu outros e doou o resto para a instituição onde o pai trabalhava. Havia de tudo nessas caixas, desde a obra inteira de Buckminster Fuller, que leu em virtude do então entusiasmo de Marcílio Moreira pelo autor, até uma inusitada Méthaphysique du strip-tease, de um tal Denys Chevalier, que me ofertou, às gargalhadas, dizendo tratar-se de "leitura fundamental".

Chegando a Paris, intensifica a compra de livros de sociologia e antropologia. É o período de seu curso com Claude Lévi-Strauss, de quem se tornaria amigo, como se pode depreender das inúmeras cartas trocadas (e da nota de pesar que enviou a Hilda, logo após a morte do ex-aluno, confessando que "admirava em Merquior um dos espíritos mais vivos e mais bem informados de nosso tempo"). Já em Londres, acentua-se na biblioteca a presença de títulos de cunho liberal, obras de Weber e Rousseau, que foram usadas para a redação da tese de doutorado na London School of Economics.

Merquior contribuiu para a divulgação pioneira no Brasil da Escola de Frankfurt. Seu Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, publicado pela Tempo Brasileiro de Eduardo Portella — e ao qual viria depois a se referir como livro excessivamente heideggeriano — é ainda hoje uma referência central ao tema. Dos pensadores tratados neste volume, permaneceu o entusiasmo pelo heterodoxo Walter Benjamin.

Na revista de Portella publicou muitos ensaios, além da entrevista que, junto com Sérgio Paulo Rouanet, fez com o pensador francês Michel Foucault, cuja obra examinaria criticamente depois, em livro publicado originalmente na Inglaterra e logo traduzido para várias línguas (inclusive o turco). Há nos ensaios de O fantasma romântico um certo enfrentamento crítico às posições defendidas por Octavio Paz. Eles irão, no entanto, estreitar relações no México, em função do ideário liberal que Merquior mais e mais defendia.

José Guilherme Merquior dividiu sua obra em duas categorias: 1) crítica; 2) estética, cultura, política. No primeiro grupo se encontram Razão do poema — Ensaios de crítica e estética (1965); A astúcia da mímese — Ensaios sobre lírica (1972); Formalismo e tradição moderna — O problema da arte na crise da cultura (1974); O estruturalismo dos pobres e outras questões (1975); Verso, universo em Drummond (1975); De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira I (1977); O fantasma romântico e outros ensaios (1980); As idéias e as formas (1981); O elixir do apocalipse (1983); De Praga a Paris (1986).

No segundo grupo: Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin — Ensaio crítico sobre a escola neo-hegeliana de Frankfurt (1969); Saudades do carnaval — Introdução à crise da cultura (1972); A estética de Lévi-Strauss (1977); O véu e a máscara: ensaios de cultura e ideologia (1979); Rousseau e Weber: dois estudos de teoria da legitimidade (1980); A natureza do processo (1984); O argumento liberal (1985); Michel Foucault ou O niilismo de cátedra (1985); O marxismo ocidental (1987); Liberalismo antigo e moderno (1990). Isso para não falar dos textos inéditos no Brasil, que serão reunidos sob o título O outro Ocidente; os artigos em O Globo, a serem publicados com o nome da coluna, A vida das idéias; e os dispersos em revistas e jornais e que não incluiu em livro.

Há ainda a organizar as polêmicas, as entrevistas e a correspondência, rica e variada, que, muitas vezes, ele xerocava antes de enviar. Neste caso estão as cartas que mandou a Gilberto Freyre, a primeira delas escrita em Bonn, entre 28 de julho e 3 de agosto de 1972, da qual destaco dois trechos:

Prezado mestre Gilberto Freyre,

Tive a honra e o prazer de conhecê-lo pessoalmente em Paris, há uns 3 ou 4 anos, na embaixada do Brasil (...). Não creio que o senhor se lembre do que me disse então sobre o seu projeto de livro dedicado aos cemitérios pernambucanos(projeto que me deixou curiosíssimo, ansioso pela possibilidade de comparar sua prosa necropolitana com os poemas tumulares de Drummond, João Cabral e Murilo Mendes, meus poetas de cabeceira entre os nossos modernos).

Faço, desde 60, uma crítica literária que procura enriquecer-se no contato com a filosofia e as ciências humanas. (...) pertenço a uma geração impregnada de hostilidade em relação a Gilberto Freyre. Embora desconcertado por, ou contrário a, mais de um juízo seu, não compartilho esse sentimento, a meu ver preconceituoso. Sou relativamente imune seja às restrições 'científicas' a seu método sociológico, em geral feitas por gente surda ao verdadeiro exame de consciência que a sociologia se vem saudavelmente entregando (basta ver, no mundo alemão, a crítica ao pseudo-objetivismo sociológico, desde um Freyer até, hoje, um Habermas), seja nos sarcasmos dos que se enraivecem ante a 'impossibilidade' de ajustar as análises sócio-culturais de obras como Casa-grande & senzala ao figuro 'progressista'.

Nessa longa carta, início de uma firme amizade, Merquior aproveita para cobrar recente declaração do sociólogo pernambucano:

(...) discrepo da sua porretada em Lévi-Strauss. O senhor sabe muitíssimo bem que não se trata de nenhum 'mediocrão'. Conheço bem a obra dele, fui seu aluno no Collège de France durante quatro anos. Tristes tropiques é um texto saborosíssimo, de riqueza montaigniana, mas não é, como o senhor não ignora, uma coisa central na obra científica de L.S. O que aí se diz sobre um certo Brasil (especialmente paulista) não é, afinal, tão injusto quanto o senhor sugere. Ninguém melhor do que o senhor tem condições, entre nós, para aquilatar a riqueza de perspectivas de livros como Anthropologie structurale e La pensée sauvage; livros, sobretudo o último, plenos de áreas de convergência com a analítica antiidealista (antiidealista sem metafísica "materialista", é claro; antiidealista no sentido em que toda autêntica sociologia do conhecimento o é) e anti-etnocentrista de Gilberto Freyre. E L.S. não "desemburrou" no Brasil — desemburrou nos Estados Unidos, em contato com Jacobson, etc. Aliás, mesmo que ele tivesse sido realmente injusto com o Brasil, e daí? não deveríamos nós — e Gilberto Freyre a fortiori — aplicar nossa indulgente tolerância brasileira ao caso? Tolerância que se desdobraria em objetividade de juízo, permitindo o reconhecimento do valor da obra de intelectuais menos amigos do Brasil.

Uma antologia de textos de Merquior deveria incluir as páginas sobre Machado de Assis contidas em De Anchieta a Euclides; o ensaio sobre Gilberto Freyre em As idéias e as formas; "A interpretação estilística da pintura clássica" em Formalismo e tradição moderna; os capítulos finais de Saudades do Carnaval; "Malraux contra Gide", em O estruturalismo dos pobres e outras questões; "O modernismo e três de seus poetas", em O elixir do apocalipse; "Guerra ao homo oeconomicus" e "Linhas do ensaísmo de interpretação nacional na América Latina", em O argumento liberal; a seção "Psicanaliteratura", em O fantasma romântico; "O vampiro ventríloquo", "Na casa grande dos oitenta" e "A volta do poema", em As idéias e as formas, isso para não falar de seus inúmeros ensaios publicados em revista estrangeiras, como "O logocídio ocidental", "Vico, Joyce e a ideologia do alto Modernismo", "Em defesa de Bobbio", e outros muitos inéditos no Brasil.

Em 1980, Merquior voltou a residir em Brasília, depois de uma temporada em Montevidéu um pouco tormentosa — até porque sua biblioteca tardou meses a ali chegar — mas que também lhe deu o clima propício para aprofundar o conhecimento da história política e ideológica latino-americana, ao escrever o último livro, Liberalismo — Antigo e moderno, principalmente na parte em que trata de Sarmiento e Alberti.

Na capital brasileira trabalhou então com Francisco Rezek na assessoria de Leitão de Abreu e voltou a dar aulas na UnB, onde praticou uma consultoria informal, ajudando com seus contatos a trazer ao Brasil grandes nomes do pensamento internacional no momento de maior efervescência da editora dessa universidade, então sob a direção do também diplomata Carlos Henrique Cardim.

Logo começaram a falar que era "o intelectual da ditadura", responsável pela redação de discursos. Curioso que nunca tenham imputado a mesma acusação ao mineiro Rezek, que com ele trabalhava. Nessa época, Merquior me contou que, numa reunião no palácio com vistas a impedir a construção do Memorial JK, desenhado por Niemeyer, fizera apenas um comentário aos adversários do projeto: "Acaba de sair em Londres uma obra importante, Makers of Modern Culture, onde só foram incluídos dois brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e Oscar Niemeyer. Peço considerarem o fato". O memorial acabou sendo erguido. Não necessariamente por artes de sua retórica, mas o episódio diz bem da liberdade de opinião e senso do relevante que impregnavam os aspectos mais corriqueiros de sua vida.

Vê-lo trabalhando era interessantíssimo: fazia de início, na sua letra miúda inconfundível, um pequeno roteiro, que com os anos foi ficando cada vez mais reduzido e taquigráfico. Não usava fichas ou computador, mas, quando se punha a escrever, o texto ia saindo pronto, limpo, sinônimo de uma organização mental impressionante. Os originais de O liberalismo — Antigo e moderno, por exemplo, que me mostrou no México, pareciam psicografados. Escritos em inglês, à mão, como tudo o que produziu, não tinham rasuras, vacilações ou emendas.

Estudioso de tempo integral, Merquior sempre ironizou a sua "tão propalada erudição". A certeza de que o conhecimento é infinito o fez, obsessivamente, tomar contato com tudo o que considerava relevante em várias línguas, através de inúmeros jornais e revistas especializadas, que devorava com apetite. Entrar com ele numa livraria (e fiz isso dezenas de vezes no Brasil e no exterior) era uma experiência intelectual indescritível. Conhecia tudo. Até o dia de sua morte permaneceu lúcido, com a vivacidade e o humor que fizeram dele não só o amigo ideal, mas o ensaísta elegante, o inexcedível crítico de poesia, e o polemista implacável, sempre disposto, porém, a aplaudir o adversário inteligente. Até o fim acalentou projetos, entre os quais o de um longo ensaio sobre o modernismo.

Sobre a última conferência, em Paris, o embaixador Rubens Ricupero — a quem Merquior dedicou, junto com Celso Lafer, o ensaio "Em defesa de Vico contra seus admiradores" — anotou em seu diário:

Perto do fim, mobilizou as forças restantes para o que seria sua última palavra: a palestra de abertura do ciclo 'O Brasil no Limiar do Século 21', organizado por Ignacy Sachs. Foi em 17 de dezembro de 1990. Tomei o trem para ir escutá-lo em Paris e voltei a Genebra na mesma noite. Minha impressão ficou registrada nesse escrito da época: '...tive quase um choque físico ao revê-lo. Estava devastado pela doença; sua cor, seu olhar, seus traços faciais, sua extrema fragilidade e magreza pareciam de alguém que tivesse retornado da casa dos mortos. No entanto, quando começou a falar, sem texto escrito, sem notas, num francês límpido como água da fonte, o auditório se desligou do drama a que assistia. Durante quase uma hora, acompanhamos como a história do Brasil se renovava sob os nossos olhos por meio da sucessão e do entrechoque dos diversos projetos que os brasileiros sonharam para o país desde a independência. Terminada a palestra, foi a vez de Hélio Jaguaribe falar. Exausto com o esforço descomunal, José Guilherme cruzou os braços sobre a mesa e neles repousou a cabeça, no gesto de um menino debruçado sobre a carteira da sala de aula'.

Merquior lutou contra o irracionalismo na cultura, os ataques à razão histórica, os formalismos na arte, sempre procurando inserir o Brasil em suas reflexões. Os ensaios que produziu nos últimos anos deixam claro a preocupação que o moveu no sentido de entender as peculiaridades da política e da crise institucional brasileira. Acompanhava com interesse o que estavam produzindo intelectuais como Wanderley Guilherme dos Santos, Hélio Jaguaribe, Fábio Wanderley Reis e José Murilo de Carvalho. Foi um solidário companheiro intelectual, procurando ajudar como podia: às vezes a editar um livro, como fez com o primeiro de Evaldo Cabral de Mello; outras, empenhando-se com seu característico entusiasmo em fazer chegar à Academia figuras nobres como Evaristo de Moraes Filho, a quem dedicou o último ensaio; revendo e sugerindo acréscimos a Afonso Arinos — que o chamava de "meu filho" e o beijava no rosto — quando o memorialista finalizava o livro Amor a Roma. Vi-o também procurando ajudar Eduardo Portella a se instalar em Paris, para onde seguira como diretor da Unesco; mostrando-se atencioso com John Gledson quando este começou a se interessar por Machado de Assis; e empenhando-se, junto a colegas acadêmicos, para trazer Pedro Nava aos quadros da ABL em 1983. E paro aqui porque gestos dessa natureza eram a tônica de sua personalidade.

O pensamento maduro de Merquior forjou-se principalmente no convívio de intelectuais como Raymond Aron, seu mestre e amigo, figura cativante, de gestos sóbrios, fala mansa e olhar injetado de ironia, com quem passamos, no começo da década de 80, um dia inesquecível no Rio; Ernst Gellner, o antropólogo e teórico do nacionalismo, cuja refutação epistemológica da psicanálise tanto fascínio exerceu sobre ele; Perry Anderson, o teórico do Estado absolutista e editor da New Left, com quem gostava de debater as questões teóricas do marxismo; o sagaz crítico literário Harry Levin; o erudito historiador Arnaldo Momigliano, que o iluminou no enfrentamento crítico à obra de Foucault; Leszek Kolakovski, autor de uma história intelectual do marxismo que lia e recomendava; Lucio Coletti, agudo analista das contradições da dialética; e Norberto Bobbio, por suas reflexões sobre a democracia e o liberalismo.

Alguns o supunham um pedante, figura sem humor, incapaz de se alegrar com as trivialidades da vida mundana. Nada disso. Gostava de comer bem, de viajar, de ouvir boa música, de admirar bons quadros, não passava sem o perfume Armani, e, embora não ligasse para bebida, fazia questão de tomar caipirinha sempre que vinha ao Brasil. Embora não pudesse ficar muito tempo ao sol devido à pele branca, certa vez, distraído, mergulhou de óculos e acabou por perdê-los no mar de Copacabana.

Tinha fascinação por detalhes: numa adaptação cinematográfica da obra de Proust, chamou minha atenção para as costas da belíssima Ornella Muti. Gostava de contar e ouvir piadas de toda natureza, inclusive eróticas, e divertia-se em compor dedicatórias usando nomes famosos. Numa biografia de Alma Mahler escreveu: "Ao jovem e distinto brasileiro, Dr. José Mario Pereira Filho, pedindo-lhe indulgência para com todas as corníferas figuras que povoaram a vida de Alma, com a perene admiração e as cordiais saudações do José Pereira da Graça Aranha, Aix-les-Bains, janeiro de 1889".

Era capaz de comprar um livro mesmo que apenas um trecho o interessasse, e tinha memória prodigiosa. Uma vez, de férias no Rio, me ligou perguntando se possuía uma obra de Pierre Manent sobre o liberalismo, porque precisava confirmar uma citação. Apanhei o livro na estante e Merquior disse: "Veja no capítulo tal... Diz mais ou menos assim?" E o ouvi citar, sem tirar nem pôr, um parágrafo inteiro. Admirava os aforismos de Lichtenberg, a obra de Musil, Canetti e Borges — com quem passou uma tarde em Buenos Aires, em 1980, e de quem ganhou um livro de H. A. Wolfson sobre Spinoza que há anos perseguia. Não perdia encenações do diretor italiano Giorgio Strehler, e se tornou amigo de Gláuber Rocha, a quem considerava, "com a lucidez da sua loucura, o melhor sismógrafo da turma de 60". Nos últimos tempos quase não lia romance, mas leu e gostou de Viva o povo brasileiro!, de João Ubaldo Ribeiro.

Encerro este depoimento sobre José Guilherme Merquior — o intelectual, o esteta, o pensador, o crítico, o polemista extraordinários, mas também o fraternal amigo — narrando mais uma cena reveladora de sua personalidade singular. Em Boston, com Hilda, para nova consulta sobre a saúde, aproveitou para marcar uma visita à editora Twayne, que finalizava a edição de Liberalism — Old and New. No encontro com o médico, ouviu com resignação o diagnóstico de que tinha pouco tempo de vida. Hilda, sempre cuidadosa, sugeriu que fossem para o hotel, mas ele não quis: dali mesmo, apoiando-se na companheira de toda a vida, rumou para a editora, onde o aguardavam. Comportou-se lá como se nada de errado estivesse acontecendo. Com a cordialidade habitual, verificou os detalhes sobre a publicação, fez sugestões quanto à capa do livro que tanta alegria lhe dera escrever — e, sabia agora, jamais veria impresso — e despediu-se sem deixar a menor suspeita de que em breve partiria para uma outra esfera do tempo...

Rio de Janeiro, 11-20 de fevereiro de 2001