quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Silviano Santiago - Prazer da Leitura

PRAZER DA LEITURA, DESPRAZER DA VIAGEM

Silviano Santiago

Leitura e viagem são pares inseparáveis, às vezes desagradavelmente contraditórios. A leitura é sempre uma viagem simbólica. Página após página, nossos olhos nos introduzem num universo até então nunca vislumbrado. Entramos nos vários volumes duma enciclopédia pela porta estreita de historietas corriqueiras, banais, sem grandes heróis e grandes feitos. De repente, - tomemos este exemplo – abrimos um livro e estamos em Londres, caminhando pelos seus boulevards e ruas, investigando panoramas dentro dos parques, descobrindo os rigores do inverno e o sentido do cachecol e das luvas. Estamos freqüentando cafés e restaurantes cujos nomes até então nos eram completa ou vagamente desconhecidos. Participamos de conversas íntimas ou amorosas, experimentamos comidas e licores cujos nomes nos inebriam e nos fazem sonhar acordados. Podemos entrara numa casa de família pelas mãos de Katherine Mansfield e conhecer os detalhes das difíceis relações cotidianas. Brigas, desentendimentos, ciúmes, ódios, intrigas, invejas, olhares, amores, sentimentos inacabados. Podemos entrar num escritório em companhia de E. M. Forster e dar-nos conta das complexas relações humanas e trabalhistas numa sociedade de castas, situação humana tão intrigante quanto a criada pelas reclamações feitas pelo pai à hora da refeição e que entraram por um ouvido e saíram pelo outro.

Fechamos o livro com um conhecimento estranho e familiar do  desconhecido. Um cineminha continua a funcionar na memória, desparafusando certezas e profundidades. Imagens estranhas e íntimas. Chocantes e naturais. Tocamos com o dedo a realidade vista através das lentes de projeção e ganhamos o sono.

Para o adolescente, a leitura acaba sendo um prenúncio da viagem que fará, ou nunca fará. Depende. Caso seja um ávido leitor de romances, terá conhecido na intimidade das aventuras rocambolescas não apenas outras cidades do seu próprio país, como outras cidades do mundo. Terá tido acesso a vários pontos de vista que descrevem a cidade que lhe apetece como uma obsessão. Terá lido variados autores que a descrevem e a fazem funcionar com as voltas e as velocidades programadas das hélices de um liquidificador. Terá, ao final de algum tempo, um panorama mais rico daquela cidade que do bairro onde nasceu e vive.

Às vezes indisfarçável, há um sentido de poder sobre as coisas e os seres humanos, sobre o mundo, que advém das múltiplas leituras. O universo cabe inteiro numa bolinha redonda chamada cabeça e é movimentado pelo ditador que nela mora. As pequenas e mesquinhas aventuras do cotidiano familiar e escolar ganham a dimensão do ridículo. As histórias contadas pelos companheiros de repente são esvaziadas pela imaginação que optou pela curiosidade que transgride os limites dos quatro cantos da cidade. Você se tornou melancólico e altivo. Você foi de dentro e agora se alimenta lá fora. Já não consegue enxergar o que lhe cerca com os mesmos cindo sentidos dos que lhe são próximos ou pares. Nada lhe sobra, tudo lhe falta. Faltam-lhe odores, sabores, peles, paisagens, cores, tudo o que te pertence por direito de leitura e que só pode ser passageiramente satisfeito se você se adentrar por outra leitura.

Um livro reclama um outro, como um cigarro, um copo de uísque, ou como uma droga. Não há lógica contra o vício. Só a força de vontade entorpece o vício. E aquela, pobre coitada.

Finalmente, você se preparou para viver experiências que são tão extraordinárias quanto as ocasionadas vicariamente pela leitura. Você está onde sonhou estar. Tudo que era íntimo readquire distância à medida que se aproxima. Você desconhece o que conhece. Sente de maneira aguda um aperto no coração, uma retorcida sensação de déjà vu nos olhos. Não existe maior decepção para você que a experimentada nos primeiros passos dados na cidade estrangeira que você conhece tanto de leitura.

Uma imensa e infinita placa de vidro baixa como num filme de ficção científica entre os seus olhos e a realidade ambiente. A placa recobre como gigantescas bolhas os lugares, os seres e as coisas, silenciando-os seja pela linguagem dos lábios, seja pela falta de calor humano.

Não há viagem simbólica, ou seja, leitura, que prepare para a desilusão da viagem. Pelo contrário. Maior o número de leituras, maior a decepção. Por sorte, há o entusiasmo acumulado durante a inércia da leitura. Ele é o grande poço de onde se extrai, nos momentos de maior desalento, a água benta que reanima, fortalecendo os músculos e a sensibilidade pelo sentido da fraternidade universal.

O entusiasmo força você a entrar onde já não tem mais prazer em entrar. Uma outra e definitiva vez, por que não? Preferia ter ficado de fora, atrás da bolha extraterrestre, apreciando as coisas e os seres como os apreciava passando as páginas do livro. Para quê? Você já viu o que vê sem ter visto. Você vê já tendo entrevisto. O entusiasmo força. Você tenta se refugiar no livro, abrigo de sua desesperança. Mas o livro não existe mais, esquecido que ficou numa estante perdida no tempo e no espaço. Você não tem alternativa. Você entra no restaurante. O paladar rechaça as iguarias. O olfato estranha os delicados perfumes. As palavras são poucas e pobres para dar conta do ambiente que te cerca e alimentava a sua imaginação provinciana.

“Tudo aqui tem um nome” – ecoa-lhe na memória uma passagem do livro. A graça está em conhecer cada coisa pelo seu próprio nome. Coce troca o nome das coisas, despertando o riso dos personagens. Para pedir um chope, você deve ter usado uma palavra livresca, há muito fora de circulação. A vergonha está em desconhecer o nome atual. O nariz respinga a rinite que veio com o vento e o frio. Nada é tão fácil de ser acuado contra a parede quanto um coração em chamas no estrangeiro. Tão fácil trespassá-lo com uma espada e ficar colhendo as gotas de sangue como um seringueiro solitário na floresta amazônica. Depois de anos e anos de segredos verdades com carinho de donzela, você tem, aberta no peito, uma ferida cujos lábios dizem e repetem: “Eu não sou turista!”. E mais você grita, mais a ferida cicatriza em marcha de sobrevivência.

Talvez seja por essa razão que grandes viajantes simbólicos, como o poeta Carlos Drummond de Andrade, pouco ou quase nunca pisaram solo estrangeiro. Sabemos de viagens suas somente até a Argentina. Preferia as asas leves, infantis e inflamadas da sua coleção de livros escritos por Jules Verne.

É uma hipótese que acalenta o prazer da leitura e disfarça o desprazer da viagem.

(JB, 31/10/1998)

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